Sem sangue do Alessandro Baricco (Companhia das Letras, 2008) é uma ficção italiana dividida em duas partes e que subverte seu próprio título. Iniciamos com um acontecimento traumático, violento e banhado em sangue que surge como consequência de uma guerra que deveria estar terminada. Na segunda parte, veremos os desdobramentos dessa tragédia na vida de algumas personagens, em uma história onde a vingança ganha contornos interessantes através da narrativa de Baricco. Toda a força da obra está nos diálogos e em um clima de tensão que não sabemos muito bem para onde nos levará, mas que levanta discussões sobre verdade e mentira, guerra e paz, em uma relação onde fatos e memórias podem definir quem é vilão e quem é herói.


A história inicia com o médico Manuel Roca, que vive recluso com seus dois filhos pequenos em uma fazenda, observando a aproximação de um carro já ciente do perigo que vem. Ele coloca um rifle na mão do filho e pede que o mesmo se esconda, enquanto a menina é colocada dentro de um alçapão camuflado no chão. As descrições a seguir são semelhantes a inúmeras produções hollywoodianas, onde o embate a tiros é que dá o tom da obra, mas na obra de Baricco o clichê trabalha juntamente com a construção de um diálogo bem estruturado e angustiante, que não nos deixa entender o porque e nem por quem cada lado está lutando.

No campo, a velha casa da fazenda de Mato Rujo erguia-se escura, esculpida em preto contra a luz da noite. A única mancha no perfil vazio da planície. Os quatro homens chegaram num velho Mercedes. A estrada era esburacada e seca – estrada pobre de campo. Da casa da fazenda, Manuel Roca os viu.
No começo da obra há uma nota onde Alessandro Baricco informa que estamos diante de uma obra de ficção e que a sua escolha por dar nomes hispânicos aos personagens não possui nenhum sentido para além do estético. Ele define, de forma bastante bonita, que os nomes são apenas para garantir a musicalidade do texto.

Como ele também não define a história em um tempo e um espaço, o texto abre diversas possibilidades de interpretação. Baricco utiliza de alguns elementos que nos fazem suspeitar de que lugar e de que pós guerra a narrativa se trata, através da ambientação e de alguns diálogos que funcionam mais como frames de memórias do que fatos em si.

Uma grande tragédia acontece. A primeira parte do livro finaliza de forma cíclica como se fosse um conto, que inclusive poderia ser lido individualmente. Na segunda parte acontece um salto no tempo e passaremos a acompanhar um diálogo revelador entre uma sobrevivente e seu algoz.

Alessandro Baricco traça uma trama genial que coloca em evidência como as memórias individuais e coletivas estão sujeitas a alterações irreversíveis e que podem criar uma outra história dentro da história. Temos a lembrança de alguém que era criança e que registrou memórias do que ouviu de dentro de um buraco, confrontadas com a de um homem que participou dos fatos e que na época acreditava estar contribuindo para a construção de um mundo melhor. Para Nina, agora uma mulher de mais de cinquenta anos, seu pai fora brutalmente assassinado, enquanto para o homem a sua frente, um possível torturador de guerra foi silenciado para sempre.

Acompanhamos um diálogo inteligente e profundo entre um ex-guerrilheiro e uma sobrevivente que desnuda as nuances do jogo da guerra, as motivações para escolher as lutas que se deseja enfrentar, a fluidez da noção do que seria um mundo melhor e como o sofrimento pode abrir ou cegar a percepção da realidade. Todas as dúvidas e imprecisões que Baricco joga sobre os leitores é que tiram a obra de um lugar comum e que permite criar inúmeras hipóteses sobre os acontecimentos.