Elza do Zeca Camargo (Editora Leya, 2018) é uma biografia que conta a história de Elza Gomes da Conceição, a inesquecível Elza Soares. Elza foi uma cantora que se tornou um ícone da música e da cultura brasileira e sua história de vida, além de entrelaçar com importantes momentos da história do próprio país, também ajudava a desnudar uma realidade que muitos fingiam não existir. Inicialmente, Elza entra para o mundo da música mais como uma forma de fugir da fome e da miséria do que pela arte em si, e aos poucos cantar se torna sua energia vital. Escrita quatro anos antes do falecimento de Elza e com participação da mesma, essa é uma obra muito confessional, onde Elza tratou de temas sensíveis e revelou bastidores inusitados de sua vida e carreira. 


Eu já tinha a noção de que trazia uma coisa muito forte comigo. Não precisava fazer discurso político para incomodar. Bastava eu falar de mim, dizer quem eu era. Acho que só isso já criava um desconforto - minha história, favela, barraco, lata d'água na cabeça, mãe lavando roupa... Eu lembrava pra aquela gente que o Brasil era também aquela miséria toda.
A trajetória de Elza Soares possui tantas reviravoltas que mais parece um roteiro premeditado. Ela experimentou glória e esquecimento, vida e morte, amor e separação sempre com a certeza de que era capaz de dar a volta por cima. Não foi por acaso que Chico Buarque presenteou Elza com a música "Dura na queda": Vagueia, devaneia/ Já apanhou à beça/ Mas para quem sabe olhar/A flor também é/ferida aberta/ E não se vê chorar.

Zeca Camargo escolheu um caminho interessante para nos contar a vida de Elza ao abrir mão de uma “narrativa calendário”, muito utilizada em biografias, para explorar as memórias da cantora. No livro, não importa muito as datas, o que move a narrativa é o fluxo de lembranças que Zeca conseguiu extrair em um bate papo intimista com Elza. O autor parte de acontecimentos conhecidos da história da cantora, como por exemplo, sua participação no programa de calouros do Ary Barroso e seu estouro nas rádios após a gravação de seu primeiro disco. Zeca Camargo extrai de cada um destes fatos e muitos outros o que aquilo significou para Elza, quais foram as circunstâncias e os bastidores dos fatos.

Particularmente, gostei muito de como Zeca narrou os desafios e conquistas de Elza a cada lançamento de álbum e música. Como leitor, fui fazendo também um percurso sonoro pela vida de Elza. Através desse exercício muitos discos e músicas ganharam uma outra proporção para mim, que já era fã de Elza. Na leitura a gente descobre histórias por trás das histórias.

Um dos pedidos de Elza, ao dar aval para a escrita da biografia, foi que Zeca não a representasse como santa. A cantora sempre teve ciência de seus erros e contradições, portanto, fez questão de passar por todas as temáticas polêmicas que fizeram parte de sua vida e que foram acompanhadas de perto pela mídia e pelo povo. Em muitos momentos percebemos como alguns acontecimentos ainda eram sensíveis para Elza, mesmo depois de passados tantos anos, como por exemplo a morte de três de seus filhos.

O livro narra com detalhes os anos felizes, mas também conturbados que Elza passou ao lado de Garrincha. O relacionamento da estrela da música com um dos maiores nomes do futebol enfrentou a ira da opinião pública. Elza era vista como uma destruidora de lares, uma vez que Garrincha largou seu casamento e suas filhas para embarcar em uma história de amor arrebatadora com ela.

Hoje sabemos que a opinião pública sobre Elza era uma junção de moralismo, machismo e racismo. Colocavam nas costas da Elza toda a culpa do mundo, enquanto em casa ela dedicava todo seu amor a um homem que aos poucos ia se destruindo através do alcoolismo.


A bebida era, mais e mais, um problema que Elza não podia ignorar. “Não tinha um dia em que saísse de casa e que não tivesse a certeza de que Mané ia cair de boca na garrafa. Quando aqueles amigos dele iam lá, então, o Swing e o Pincel, eu sabia que ia encontrar meu homem estragado no sofá, com bermuda aberta e sem camisa. O que eu podia fazer? Meu amor por ele ainda era muito grande.” Mesmo assim, Elza brigava para recuperá-lo, ou pelo menos tentar fazê-lo beber menos. Inutilmente.

Enquanto lidava com pequenas e grandes tragédias na vida pessoal, Elza não arredava pé de sua arte. Cantar era algo essencial para a sua sobrevivência, algo que garantia seu ganha pão e sua saúde mental. Elza não poupava esforços em dedicar sua vida a seus álbuns e seus shows.

Algo que chama atenção na biografia de Elza, é que por mais que seu talento e sua extensão vocal sempre foram algo incontestável, ela sempre teve que lutar com unhas e dentes para garantir seu espaço e seu reconhecimento. A impressão é de que sua carreira sempre esteve em risco e hoje sabemos o quanto o racismo era algo definidor para esse cenário. Foram muitas as vezes que Elza precisou se reerguer, precisou recomeçar e sua capacidade de não desistir supera todas as expectativas.