O avesso da pele do Jeferson Tenório (Companhia das Letras, 2020) é um romance arrebatador. O narrador Pedro, evoca memórias e acontecimentos pontuais da história de sua família e mais especificamente de seu pai. Com isso, constrói uma narrativa que perpassa assuntos como as relações familiares, gênero, raça, educação e afetos em um país onde viver com dignidade é um desafio. Algo marcante na obra é a escolha que o autor fez por escrever como se Pedro estivesse falando diretamente para seu pai, já morto. Em algo que parece uma conversa, o rapaz revive pequenas e grandes violências, assim como pequenas e grandes conquistas. A narrativa soa como uma maneira de Pedro demonstrar empatia pelas vivências do pai, cuja trajetória mostra o quanto estamos diante de um sistema falido e que impacta diretamente na vida das pessoas. É como se Pedro dissesse a ele: “você não teve culpa pai”.


Às vezes você fazia um pensamento e morava nele. Afastava-se. Construía uma casa assim. Longínqua. Dentro de si. Era esse o seu modo de lidar com as coisas. Hoje, prefiro pensar que você partiu para regressar a mim. Eu não queria apenas a sua ausência como legado. Eu queria um tipo de presença, ainda que dolorida e triste. E apesar de tudo, nesta casa, neste apartamento, você será sempre um corpo que não vai parar de morrer.

O livro é narrado em segunda pessoa e enquanto Pedro explora as memórias de forma não linear, que nitidamente fazem parte de um processo de elaboração do luto, também utiliza muito da palavra “você” ao se direcionar ao pai. Essa estratégia, que é utilizada já no parágrafo de abertura, nos ajuda a entender o direcionamento que a obra irá tomar. Percebemos aos poucos que Pedro, ao conversar com esse pai agora ausente, também está conversando consigo mesmo. É um papo direto com o homem que seu pai foi e com o próprio homem que Pedro se tornou. Quando começa a olhar para o avesso da história do pai, o rapaz começa a entender o lugar que fora colocado na sociedade enquanto homem negro e o porque de algumas coisas acontecerem.

A obra é fortemente marcada por questões raciais como o impacto do racismo nas vivências de uma família negra. Jeferson Tenório constrói inferências inteligentes para nos mostrar como uma sociedade racista utiliza de estratégias para contribuir com a sensação de não-pertencimento das pessoas negras em situações, lugares e demais formas de existir. Passamos a viver em “não-lugares sociais”.

As manifestações racistas, vão aparecendo aos poucos no livro, como por exemplo, na passagem em que Pedro narra sobre um namoro que o pai teve, ainda jovem, com uma mulher branca. Paralelo a isso, seu pai conhece um professor na universidade, que se torna uma referência intelectual. Suas aulas o inspiram a estudar sobre classes sociais e racismo e só então seu pai começa a perceber que aquelas piadas recorrentes na mesa de jantar da casa da namorada, significavam algo problemático.

Apesar do racismo ser um fio condutor do texto, a forma como Jeferson Tenório entrelaça o tema na história faz toda a diferença. Ele consegue colocar o leitor como observador das nuances do preconceito mostrando exatamente como ele se manifesta. É possível perceber como o racismo obedece a uma escalada que pode ir do pequeno e quase imperceptível ao extremamente violento. O capítulo em que o narrador conta um pouco da história de sua mãe, podemos perceber mais uma faceta de como passamos a perceber que somos um corpo negro no mundo e que essa percepção se dará pelo olhar violento do outro.

Que cada pessoa é uma pessoa e nunca deixe te diminuírem porque você é negra, ela disse. Minha mãe, a princípio, não entendeu porque ela falara aquilo com tanta ênfase e passou dias pensando naquela palavra: "negra". Antes, ela era Martha ou Marthinha. Agora, depois de uma simples pergunta, ela passará a ser Martha e negra.
A trajetória de vida do pai de Pedro e a forma trágica e estúpida como morre, acabam servindo como uma alegoria quase gráfica do que é ser negro no Brasil. O livro nos dá campo literário e simbólico farto para pensarmos também sobre a masculinidades negra, principalmente pelo viés da solidão e dos afetos. Quando verdadeiramente olha para seu pai, Pedro acaba olhando para si e percebendo algumas armadilhas que são forjadas para o povo negro. Quando dá conta de transformar isso em algo, de elaborar uma narrativa, Pedro se sente dono da própria história. Enquanto o pai não sabia ir embora, o filho já nos dá indícios de que pode conseguir trilhar um caminho diferente.

Acho que vocês nunca se preocuparam em organizar uma narrativa para mim. Sei que o tempo foi passando e o que foi dito por vocês, antes da minha memória, foi dito em retalhos. Então precisei juntar os pedaços e inventar uma história. Por isso não estou reconstruindo esta história para você nem para minha mãe, estou reconstruindo esta história para mim. Preciso arrancar a tua ausência do meu corpo e transformá-la em vida.
“O avesso da pele” é um livro que pode provocar diversas reflexões e para além da violência do racismo, também ficou para mim a importância de conversamos com os nossos sobre a própria trajetória. O acesso e exploração de nossas memórias é o que também nos faz ser alguém no mundo e quando conhecemos quem somos e de onde viemos, passamos a ter uma consciência maior sobre nosso papel no mundo.