Kim Jiyoung, nascida em 1982 da Cho Nam-Joo (Intrínseca, 2022) é um romance coreano que nos conta em detalhes a trajetória de vida da personagem Kim Jiyoung. Numa primeira vista, Kim se enquadra naquelas características que o senso comum geralmente atribui às mulheres, onde ela poderia ser mais uma mulher comum que vive sua vida quase que completamente tomada pelo cuidado com a casa, com a filha e o marido. Acontece que o que “Nascida em 1982” faz é mostrar as micro e grandes violências que se escondem no papel social que as mulheres precisam se submeter e como a própria ideia de “lugar comum” e de “normalidade” ajudam a corroborar a opressão de gênero.


Sabemos sobre a discrepância que existe entre os gêneros nas sociedades e no caso deste livro, somos apresentados a um tipo de opressão bem difícil de combater, pois vem ancorada na ideia de tradição e cultura de um povo. Na Coreia do Sul, os lugares sociais destinados a homens e mulheres são muito bem demarcados e nem precisamos refletir muito para concluir o quanto as liberdades e os direitos das mulheres estão sempre em risco.

Kim Jiyoung, assim como muitas mulheres coreanas, precisou abrir mão de seu emprego quando engravidou. Essa é uma espécie de regra não dita na sociedade coreana e junto com a maternidade vem uma infinidade de atribuições que o machismo e as convenções sociais colocam apenas nos ombros das mulheres. Mas o que acontece quando uma mulher oprimida foge da norma e começa a agir de forma estranha?

O comportamento incomum de Jiyoung foi percebido pela primeira vez no dia 8 de setembro. Daehyun sabe a data exata porque era manhã de baengno (“orvalho branco”), após a primeira noite de outono em que a temperatura cai abaixo do ponto do orvalho.
Jiyoung começa a literalmente incorporar a identidade de outras mulheres. Como uma espécie de “possessão” no meio de uma conversa casual, ela toma para si o modo de falar e de agir de alguma mulher que tenha passado por sua vida. Seja essa personalidade viva ou morta. Jiyoung começa a falar como a própria mãe, ou como a sogra, como uma professora que conheceu anos atrás. É como se ela estivesse mimetizando todas as mulheres numa tentativa de fazer parte de algo, de estabelecer contato, de ampliar sua voz. 

Inicialmente o marido de Jiyoung pensa ser apenas uma brincadeira da esposa e tenta não se preocupar, mas aos poucos ele vai ficando confuso e também assustado com o quanto são idênticas e muito específicas as tais representações. Ele procura a ajuda de um psiquiatra e a partir daí que iremos conhecer a vida de Jiyung em detalhes.


A narrativa se divide entre sua infância, adolescência, início da vida adulta, casamento e a atualidade. A escritora Cho Nam – Joo mostra através de diversos episódios como o patriarcado dita regras que colocam as mulheres sempre em segundo lugar, principalmente se pensarmos numa escala hierárquica de gênero. Mostra como o machismo está entranhado em todas as formas que nos organizamos e se estabelece em um sistema que aparenta ser difícil de quebrar. Como no exemplo a seguir, que analisa a forma como a escola atua e também o próprio ambiente familiar:

Elas desenvolveram confiança e um olhar levemente crítico, mas ainda assim não conseguiam entender por que os meninos eram os primeiros da lista. O número um era um garoto, tudo começava com os garotos, e isso parecia ser o natural, o certo. Os meninos entravam na fila primeiro, os meninos lideravam qualquer caminhada, independentemente do destino aonde estivessem indo, os meninos se apresentavam primeiro, os meninos tinham a lição de casa corrigida enquanto as meninas esperavam por sua vez em silêncio, entediadas, às vezes até aliviadas por não serem as primeiras, mas sem nunca cogitar que se tratava de uma prática estranha. Exatamente como nunca questionamos por que a identidade dos homens começa com o número "1" e a das mulheres com o número "2".

Era bem estabelecido que o arroz fresco deveria ser servido na ordem pai, irmão e avó e que pedaços perfeitos de tofu e bolinhos eram do irmão, enquanto as garotas deveriam comer os que se despedaçavam. O irmão tinha pauzinhos, meias, ceroulas e mochila e lancheira que combinavam, enquanto as garotas se contentavam com o que houvesse de disponível. Se havia dois guarda-chuvas, as garotas dividiam. Se havia dois cobertores, as garotas dividiam. Se havia dois doces, as garotas dividiam. Na infância, não ocorreu a Jiyong que o irmão estivesse recebendo tratamento especial, portanto ela nem tinha ciúme. Sempre fora assim. Às vezes ela achava que alguma situação não era justa, mas estava acostumada a racionalizar as coisas, dizia a si mesma que era uma irmã mais velha generosa e que dividia tudo com a irmã porque as duas eram meninas.

É impressionante a forma como as escritoras contemporâneas estão utilizando a literatura para dar alguns gritos a muito engasgados. Tenho lido muitas obras onde a condição social da mulher tem sido explorada de forma genial, focando em temas onde antes só se falava sobre um lado romântico e idealista, como é o caso da maternidade.

O livro de Cho Nam-Joo é mais um exemplo disso e se torna ainda mais potente quando pensamos em sua ambientação e na coragem da autora de levar para as letras anseios e discussões imprescindíveis para que a gente se desenvolva enquanto indivíduos mais conscientes para construção de uma sociedade mais igualitária. Kim Jiyoung, nascida em 1982 utiliza de uma metáfora potente para nos dizer que talvez seja apenas assim, se colocando no lugar do outro que a gente conseguirá realmente enxergar nosso lugar no mundo.