João Felpudo ou histórias divertidas com desenhos cômicos do Dr. Heinrich Hoffmann (Editora Iluminuras, 2013) é um livro clássico da literatura infantil mundial. É permeado de ilustrações divertidas e com cores vivas que exploram o dia a dia das crianças através de suas traquinagens. Deparamos com a criança que quebra coisas e corre atrás de animais, com a menina que brinca com fogo apesar das advertências, da criança que não quer se alimentar como deve, dos garotos que fazem bullying quando isso ainda nem tinha nome, entre outras histórias que versam também sobre o universo dos adultos, mas que ainda assim carregam mensagens que são também alertas.


João Felpudo é um livro de uma história dentro da história, pois até a forma como a obra foi concebida é digna de virar uma narrativa ficcional. O jovem médico alemão Heinrich Hoffman, em plena época de Natal, saiu para procurar um livro ilustrado para presentear seu filho de apenas três anos e após analisar diversas obras ficou completamente desolado com a qualidade e as intenções das publicações com as quais se deparou.

À época do Natal de 1844, quando meu filho mais velho tinha três anos, fui à cidade comprar para ele um livro ilustrado como presente de festas, como parecia ser apropriado à pequena criatura daquela idade. Mas o que encontrei? Narrativas longas ou ridículos desenhos reunidos, histórias moralistas que começavam e terminavam com ameaçadoras prescrições, do tipo: 'A criança boazinha tem de ser sincera', ou: 'A criança boazinha tem de estar sempre limpa" etc.

Movido por esse incômodo, o médico alemão Heinrich Hoffmann decidiu, ele próprio, escrever e ilustrar um livro para seu filho. Ele não tinha noção de que a obra seria publicada um dia e se tornar referência. Já naquela época Hoffmann questionava o politicamente correto na literatura infantil e escreveu um livro com proposta diferente do que se encontrava na época produzindo um livro que por mais que carregue algumas lições, procura partir de um lugar mais lúdico e que reconhece as crianças como seres em estágio de descoberta.

Hoffman trabalhava como médico em um manicômio e também possuía um consultório onde atendia crianças. Sempre se sentiu incomodado em como muitas vezes os adultos utilizavam de elementos vindos do campo simbólico, da imaginação das crianças para criar ameaças e fazer concessões do tipo “se você não ficar bonzinho, o limpador de chaminés vem pegá-lo”, entre outros exemplos que conhecemos bem. Hoffmann via nessas ações um mal uso do poder que as narrativas podem ter na formação de uma criança e que podem se manifestar de outras formas para além da ameaça e do medo. O autor e médico era também bastante conhecido por sempre contar histórias para as crianças que atendia, como uma parte do processo de interação com as crianças.



Partindo de sua vivência com atendimento de crianças e da relação com o filho Hoffmann foi criando suas próprias histórias. Um dos diferencias das histórias do livro João Felpudo é que elas humanizam as crianças. Se antes as histórias queriam apenas convencer as mesmas a serem perfeitas a qualquer custo, as histórias divertidas do livro exploram as traquinagens, o mau comportamento e a desobediência das crianças, colocando-as em execução, mas sem deixar de mostrar que toda ação tem sua consequência.

Em “A história dos moleques pintados”, por exemplo, Heinrich trás uma temática não muito comum para meados do ano de 1844, que é o preconceito racial. A curta história narra a perseguição de um grupo de meninos a um jovem negro por conta do tom de sua pele. A história vista com os olhos mais críticos de hoje apresenta alguns problemas, mas nitidamente pode ser usada como exemplo de alguém que já produzia um discurso antirracista.

Uma obra como João Felpudo, que atravessa os tempos e encanta crianças de diversas gerações e diversos países nos leva a refletir sobre o poder mobilizador das histórias e da literatura na vida das crianças. Sobre um poder que leva uma obra imagética do século 19 chegar com fôlego ao século 21.