Pachinko da Min Jin Lee (Editora Intrínseca, 2020) é um romance grandioso. A história nos apresenta a quatro gerações de uma mesma família que foi impactada de forma violenta pela guerra, através da ocupação japonesa na Coreia. A narrativa inicia em um período histórico de grande convulsão social e traça um relato importante sobre o papel das mulheres na cultura oriental, a degradação da guerra, questões de imigração, noções de identidade, pátria, racismo, costumes, crenças e a força de um povo que precisa resistir.


Durante algumas décadas a Coreia foi uma colônia do Japão e utilizando da força e da repressão da cultura e dos costumes coreanos, os invasores japoneses transformaram a população em cidadãos de segunda classe. O Japão explorava todos os recursos da Coreia e estabeleceu uma política que cobrava altos impostos. Com isso a Coreia se tornou um país extremamente pobre e proibido de explorar sua própria nacionalidade. Os nativos tiveram que fazer junções de seu nome coreano com nomes japoneses, fato que não os transformava em japoneses e que de fato servia para demarcar ainda mais uma posição de não-japoneses.

No arco principal da trama temos a personagem Sunja, uma moça jovem que vivia com a mãe em uma cidade costeira da Coreia ajudando na administração de uma pensão. Aqui, já estamos falando de uma Coreia extremamente pobre e sofrendo as consequências da invasão japonesa, onde o povo está sendo privado de proventos básicos como a comida. Sunja se envolve com um homem mais velho e de posses, acaba engravidando e quando vai dar a notícia a Hansu, descobre que ele é casado e pai de três filhas que moram no Japão.

Hansu se aproximou dela. Sunja sentiu o cheiro de seu sabonete e o aroma de gaultéria de seu gel de cabelo. Estava barbeado e lindo. Ela adorava a brancura de suas roupas. Porque ela se importava com isso? Os homens da pensão estavam sempre imundos. O trabalho emporcalhava todas as suas roupas, e, por mais que esfregasse, o cheiro de peixe não saía de suas camisas e calças. Seu pai a ensinara a não julgar as pessoas por coisas tão superficiais: as roupas e as posses de um homem não diziam nada a respeito de seu coração e seu caráter. Inspirou profundamente o aroma de Hansu misturado ao ar puro do bosque.
Fazendo jus ao peso que a cultura oriental tem em relação a honra, principalmente das mulheres, Sunja começa a esconder a gravidez o máximo possível e a viver com a desonra como sombra. Mãe e filha passam a caminhar sem saber qual seu destino e o da criança que não terá um sobrenome. Até que um dia, o jovem Isak, que está a caminho do Japão se hospeda na pensão e movido por um encantamento por Sunja se oferece para casar com ela e assumir a criança que está em sua barriga. Sunja parte com Isak para o Japão onde a história da família vai se desenrolando em uma verdadeira aula sobre contexto social, guerra, política, situação das mulheres, realidade dos imigrantes, pobreza, amor, morte e luto.

A narrativa de Pachinko trabalha com um marco temporal que se inicia em meados de 1910 e se desenrola até 1989. A história segue tendo a vida de Sunja como um fio condutor, mas ao seu redor vamos vendo toda uma árvore genealógica se construindo através das pessoas com as quais estabelece relação e a vida de seus filhos. Movida por um sentimento forte de gratidão e até mesmo carinho, Sunja, que vai se tornando mulher a medida que viramos as páginas, dedica toda sua vida para os cuidados com a família.

Min Jin Lee consegue desenhar o enredo de Pachinko com maestria, pois, ao mesmo tempo que nos apresenta de forma detalhada e emocional à trajetória de cada uma das personagens, também consegue mesclar a narrativa com o contexto social de cada década retratada na obra. Em Pachinko conhecemos alguns detalhes sobre a tensa relação entre coreanos e japoneses e como conflitos sociais e interesses políticos podem reduzir um povo a um status de quase escravidão. E até mesmo como se deu o processo que dividiu a Coreia do Norte e a Coreia do Sul.

Os coreanos queriam que o Japão ganhasse a guerra? Claro que não, mas o que aconteceria com eles se os inimigos do Japão vencessem? Será que os coreanos conseguiriam se salvar? Não parecia provável. Então salve sua própria pele: era nosso que os coreanos acreditavam intimamente. Salve sua família. Encha sua barriga. Fique atento e seja cético em relação às pessoas que estão no comando. Se os nacionalistas coreanos não conseguirem recuperar seu país, deixe que seus filhos aprendam japonês e tente seguir adiante. Adapte-se. Não era simples assim? Para cada patriota lutando por uma Coreia livre, ou para cada coreano desgraçado lutando em nome do Japão, havia dez mil compatriotas no país e em outros lugares que estavam apenas tentando colocar um prato de comida na mesa. No fim das contas, o estômago era seu imperador.

O título “Pachinko” é algo muito sugestivo para a obra e só começa a fazer sentido lá pelo meio da história. O pachinko, que se trata de uma espécie de jogo de azar que é maquiado de forma a não ser nomeado como um jogo de azar, acaba em certo momento se tornando um dos sustentos da família coreana dentro do Japão. Como o pachinko é visto como uma atividade menor, por ficar entre o legal e o ilegal, se firma como uma das atividades possíveis para os homens coreanos que vivem no Japão, sendo que os mesmos também vivem no limiar entre o legal e o ilegal enquanto cidadãos. Partindo de um certo lugar de ilegalidade, os coreanos conseguem fazer fortuna. Ainda assim, é preciso salientar que não se trata de um livro sobre um jogo, mas sim sobre uma família que vai descobrindo que o jogo da vida é imprevisível.

Enquanto lemos “Pachinko” se torna inevitável o estabelecimento de algumas relações com o que já sabemos sobre a Coreia do Sul, que hoje se encontra no foco da atenção do mundo através da música, do audiovisual e da cultura pop. Min Jin Lee, mesmo através do texto literário, consegue mostrar fragmentos sobre a história do país, sobre a cultura e seu povo. Isso faz com que olhemos para a Coreia com um olhar mais consciente e também mais crítico de como chegaram a ser um dos países mais ricos e tecnológicos da atualidade. O que fica nítido é que veio, primeiramente, de uma grande vontade de sobreviver apesar de tudo.