O Cometa do W.E.B. Du Bois (Editora Fósforo, 2021) é um conto escrito há mais de cem anos e que nos surpreende tanto pela coragem ao tratar sobre as questões das classes sociais e do preconceito racial, como pelo fato de ainda se encaixar com a realidade que vivemos hoje. Du Bois conta a história de um homem negro chamado Jim que realiza trabalhos subalternos em um banco e que um dia, após ser enviado para executar mais uma tarefa “perigosa demais para homens valiosos”, ao voltar se depara com o silêncio de um mundo morto. Um cometa passou muito próximo da Terra e ao soltar seus gases, aparentemente matou a todos. Quando começa a pensar que é o único sobrevivente, uma mulher branca cruza o seu caminho e os dois passam a caminhar juntos pela própria sobrevivência e para descobrir o que acontecera com os seus.



A edição da Editora Fósforo transformou “O cometa” em uma publicação única. A obra vem acrescida de um ótimo texto da professora de Columbia Saidiya Hartman, que com uma espécie de artigo analisa o conto de Du Bois e ajuda a ampliar nosso olhar e compreensão. Hartman não chega para explicar o conto e sim para contextualizar o momento em que o mesmo fora escrito e o quanto ele está permeado de denúncias sobre a violência da segregação racial americana.

“O cometa” não cita especificamente os acontecimentos históricos em relação aos conflitos, mas utiliza de simbologias que transportam para a narrativa a tensão social da época. Os EUA haviam testemunhado recentemente um período transcorrido entre os meses de abril e outubro de 1919, chamado de “verão vermelho”, durante o qual se abateu enorme violência contra os negros americanos. “Vermelho” representando o sangue dos negros que foi derramado nesses meses. 

O conto demarca muito bem o lugar que Jim ocupa na sociedade enquanto homem negro. Uma estratégia interessante de Du Bois é que ele utiliza a palavra “negro” ou “homem negro” em momentos muito propícios do texto. Na maioria das vezes ele transmite ao leitor a mensagem de que se trata de um homem negro pela forma como ele é tratado, pela forma como ele é visto pelas outras pessoas e até por ele próprio. O texto carrega uma sensação de não-lugar, de invisibilidade e de explosões de violências que ajudam a demarcar o racismo em um tempo e um espaço.

Ele ficou por um instante na escadaria do banco, observando o rio humano que descia agitado pela Broadway. Poucos o notavam. E, quando o faziam, era de um modo hostil.
No início do conto já percebemos que as pessoas estavam cientes do tal cometa que se aproximava, e como já era de se esperar pairava no ar um descrédito, uma falta de crença na verdadeira proporção que tal evento poderia tomar. E de repente, pouco antes do meio dia o fato é consumado. A cidade de Nova York é dizimada e Jim só se dá conta ao retornar dos subterrâneos do banco, lugar em que estava no momento do desastre.

A quietude da morte reinava por toda parte, e por toda parte curvavam-se, vergavam-se e estiravam-se as formas silenciosas dos homens.

A partir daí a história se torna uma grande metáfora sobre a condição das pessoas negras diante do racismo em uma ficção especulativa muito bem construída. Du Bois faz isso de forma totalmente literária, utilizando de forma inteligente da ficção para falar sobre uma realidade assustadora. O cometa e a morte das pessoas é o que propicia a Jim alguma sensação de vida negra livre. É apenas quando as pessoas e, portanto, a sociedade morre que Jim se vê com a permissão de transitar pela cidade sem se preocupar com um olhar de raiva ou desprezo, sem ouvir um comentário maldoso ou de asco, sem o medo de sofrer uma agressão física na próxima esquina. É quando também Jim se vê autorizado a caminhar por onde quiser e acessar lugares da cidade em que jamais poderia entrar.

Sabia que deveria ficar firme e manter a calma, caso contrário enlouqueceria. Primeiro, devia ir a um restaurante. Subiu pela Quinta Avenida até um hotel famoso e entrou por seus salões deslumbrantes e fantasmagóricos. Lutando contra a náusea, tomou uma bandeja de mãos defuntas e apressou-se para a rua, onde comeu vorazmente, escondendo-se para não ser visto. ‘Ontem eles não teriam me servido”, murmurou, enquanto se esforçava a comer.

Logo Jim se depara com Julia e salva sua vida. Mais uma vez o autor explora a discussão sobre o racismo, só que agora através da investigação do olhar de uma outra pessoa sobre a figura de Jim.

Ela olhou para ele, forte e confiante. Ele não parecia os outros homens, os homens como ela sempre imaginou; contudo, agia como um, e isso a contentava.

Julia se vê diante de um homem que não fazia parte de seu mundo e que raramente ocupava sua mente como a representação de um homem. Hartman diz brilhantemente no texto “O fim da supremacia branca” que para Julia “ele era alguma coisa a mais que um desconhecido.” Ao mesmo tempo o próprio Jim, ao se deparar com um mundo aparentemente desprovido da violência usual chega a proferir em um diálogo com Julia: “Sim. Ontem, eu não era humano”. E Hartman segue no texto de análise com a provocação de que somente no fim do mundo a negritude consta como vida e o negro como humano.

Para além da ótima narrativa de “O cometa” e da charmosa edição da editora Fósforo fiquei com uma grande curiosidade em conhecer mais sobre vida e obra do W.E.B. Du Bois, uma personalidade que já ousava a falar sobre racismo em uma sociedade que se valia praticamente do direito de violentar a população negra num grau ainda maior que o de hoje. Du Bois foi sociólogo, historiador, ficcionista, poeta e editor, além de um importante ativista pela igualdade racial.