A pediatra da Andréa Del Fuego (Companhia das Letras, 2021) é um livro ousado e que nos faz pensar se existe alguém que não tenha pensamentos sórdidos na vida. É um questionamento que vem ancorado no quanto é possível se identificar com alguns dos pensamentos da personagem Cecília, uma pediatra que não gosta de crianças, uma mulher que não pensa duas vezes em ser a amante, que coloca suas opiniões como verdades incontestáveis, que tem posicionamentos classistas, machistas, homofóbicos, que cria narrativas irreais e preconceituosas sobre a maioria das pessoas que a rodeiam, que trata a empregada como alguém que pode ser facilmente descartada e que enxerga sua profissão como um estágio acima na esfera social. Cecília é uma personagem fascinante porque utiliza de uma das facetas mais maravilhosas da literatura, que é acessar o outro lado, uma outra vida, uma outra maneira de pensar. Cecília permite aos leitores experimentar a não coerência ao longo das cento e cinquenta e nove páginas do livro. Ela é o desenho perfeito de uma anti-heroína com traços assustadoramente reais. 


Na história acompanhamos mais os pensamentos do que as falas de Cecília. Quem nunca se pegou tendo um pensamento que se envergonharia e nunca diria em voz alta? Em "A pediatra" a voz que se manifesta é apenas essa, a voz da sordidez. E assim, como muitos de nós, Cecília não diz nada do que pensa e temos acesso a essa faceta de personalidade por ficarmos diante de sua voz narrativa politicamente incorreta. Andrea Del Fuego trouxe quase para o campo do real uma personagem que geralmente não assumiríamos uma admiração, por mais que existam muitas Cecílias por aí. O ambiente ficcional atenua a nossa culpa e nos deixamos seduzir por essa mulher sem filtro e pouco caráter. Chegamos a achar até irônico e engraçado Cecília olhar para um desafeto enquanto se imagina incendiando seu rosto para apagar o fogo com o sapato. 


Acredito que o que permite essa vivência leitora, entre muitos motivos, é um movimento parecido com o que acontece quando torcemos e incorporamos os bordões das vilãs das novelas das oito, quando vibramos pelo sucesso do serial killer de um thriller cinematográfico e vemos ou lemos com sangue nos olhos uma narrativa sobre vingança. De certa forma, acessamos um lado da nossa personalidade que precisa sempre ficar adormecido pela ética, pela moral, pelos bons costumes e convenções sociais. Cecília acaba sendo um retrato de cada um de nós em principalmente em relação a uma certa covardia ou uma tentativa de não ser processado ou preso, de nunca dizer realmente o que pensa e algumas pessoas poderão se sentir mais próximas do que gostariam de sua canalhice. 


A relação que a personagem estabelece com a própria profissão é algo muito comum de se encontrar se formos analisar detidamente as pessoas com quem convivemos. Apesar de sempre buscarmos a felicidade, a satisfação e o sucesso na vida profissional, é muito comum acontecer de fazermos aquilo que foi possível fazer ou aquilo que iria satisfazer uma terceira pessoa ou o desejo da família e com Cecília não é diferente. Ela tem total consciência de que a medicina não é sua paixão mas que também é possível ser muito competente no que se faz seguindo exatamente o que seu campo de trabalho pede enquanto técnica. 

Ninguém notava que eu tinha pouca vocação e paciência para ser médica, a boa formação garantia que eu não fosse processada, fazia bem-feito o feijão com arroz, procedimentos que qualquer pediatra faz escondiam minha inaptidão. Meu caso é comum, estudei medicina desapaixonada, com o pai no leme.

Cecília tem a pediatria como uma garantia de viver confortavelmente e de ocupar um cargo que lhe detêm um tipo de poder. Uma das formas que ela encontrou de não perturbar sua paz foi fugindo de casos complicados. Se uma criança aparece com algum sintoma para além dos habituais, ela logo encaminha para um outro especialista. Sempre em fuga das doenças crônicas.  "Detesto crianças e não sou eu quem as trata, mas a medicina que estudei."


A narrativa abraça com força a crueza de pensamento de Cecília. Andréa Del Fuego passou longe da prosa poética como uma forma de representar um fluxo de pensamento sem filtro, sem arrependimentos e cheio de certezas absolutas. Como Cecília conversa consigo mesma não há necessidade de floreios. Os capítulos são curtos e rasgados, como alguém que não está convidando para o diálogo e simplesmente vomitando sua visão de mundo independente de qualquer circunstância. Cecília olha para a realidade e tira suas próprias conclusões, como se estivesse aviando uma receita médica, só que diferentemente da medicina, onde ela tem a certeza da técnica e do conhecimento científico, na vida não existe receita que seja incontestável. 


Cecília trava uma guerra íntima contra Jaime, um pediatra que trabalha em parceria com as doulas e que estimula as técnicas de parto humanizado. Digo guerra íntima, pois é mais uma das opiniões de Cecília que ela guarda para si. Ela não ousa confrontar o pediatra e nem mesmo nenhuma das doulas de forma direta. Seu ódio pelas doulas, pelas parteiras e o parto humanizado vira uma obsessão, uma afronta para ela que acredita no método científico acima de tudo. 

Doulas procuram cursos de enfermagem obstétrica que, elas têm certeza, vão levá-las ao patamar de alguma coisa diplomada. Elas se aproximam de pediatras permissivos que acabam aceitando-as porque as mães passaram a exigir babás de mulher adulta ocupando espaço físico e emocional. São dependentes químicas, viciadas em parto natural, em que se deleitam com a aventura sem ter que subir a montanha, vampirizando o parto alheio para aspirar ocitocina, através da bruma potente do nascimento. Sem contar que, para elas, o médico pediatra em cena nada deve interferir no espetáculo da assistência natural, o médico fica em pé no canto do apartamentinho como fator de suporte psicossomático, faz de conta que temos médico, mas sem a medicina.

 

Cecília vai transitando entre suas obsessões. Tem uma facilidade de se obcecar por situações e pessoas e o mesmo acontece com a relação extra conjugal que vive com Celso, o pai de uma criança que ela ajudou a fazer o parto. Eles se tornam amantes e dessa história vão surgir diversas outras situações que mostram para o leitor até onde pode ir a capacidade da pediatra de criar suas narrativas sobre tudo e todos e como sua mente está adoecida. Nós só conhecemos cada personagem pelo olhar maldoso de Cecília, portanto, podemos dizer que não os conhecemos realmente, uma vez que muitas das interpretações da médica vão se mostrando irreais e bastante pessoais.  


"A pediatra" é um romance interessante para o contexto em que vivemos atualmente. Um tempo onde se cobra coerência o tempo todo, onde formas de se relacionar, de se pronunciar e de viver estão passando por uma grande revolução, onde o dito "cancelamento" está sempre a espreita. A apresentação de uma personagem como a criada por Andrea Del Fuego, nos coloca frente a frente com algumas questões, mostrando que não só Cecília, mas que também cada um de nós pintamos a vida sob a técnica do chiaroscuro e que nascer e viver também tem lá seus perigos.