Dois amores do Paulo Lins (Editora Nós, 2019) é um livro curto e muito contundente por nos colocar cara a cara não só com dois amores mas também com duas formas de enxergar uma realidade que costuma ser vista por apenas um ponto de vista. Acompanhamos dois meninos pobres do Rio de Janeiro, ambos no início da adolescência e que já vivenciam as mazelas da rua. O diferencial da obra é que além de explorar o lado duro da história de vida de dois meninos privados de direitos básicos, a história também nos mostra esses garotos como sujeitos que possuem sonhos e necessidades típicos da adolescência e onde a luta para saciá-las passa pela régua da desigualdade social. Ser adolescente é uma saga ainda maior para quem é vítima do sistema. Algo que para muitos é simples e banal, como ter um tênis novo no pé para impressionar duas meninas só é alcançado depois de vender muita bala no sinal. 


Os dois garotos que são irmãos, passam a se dedicar ao trabalho de descer para o centro do Rio de Janeiro, saindo de Queimados na Baixada Fluminense, para vender balas no sinal e fazer diversos outros bicos com intuito de comprarem tênis novinhos e chegar causando no baile funk. Enquanto isso, a narrativa vai passeando pelas dores e alegrias de viver nas ruas. Com um texto inteligente e irônico, Paulo Lins vai trabalhando com diversos tipos de dualidades que desenham as realidades por outras lentes. O texto nos provoca a todo momento, desafiando o senso comum sobre o dia a dia das ruas, dos personagens que transitam pelas esquinas e da própria cidade do Rio de Janeiro. 

A solução ainda é a rua, mesmo que o ultravioleta não bata direito na veia, nem no desejo que se incendeia nos pênis dos meninos. A molecada queria baile funk, comprar tênis pra dançar funk, funk na quadra da escola de samba que rola aos domingos, beijar a boca de Soninha, beijar a boca de Celinha, dançar, segurando na cintura, fazer a dança da bundinha, se esfregar no corpo dela, Lulu na Soninha, Dudu na Celinha. Têm que estar bonitos, têm que estar na frequência da onda, pra dançar conforme a música, e têm que ter tênis que foi feito colorido, o publicitário foi lá e bolou, a TV veiculou, o Diabo abençoou e colou.

 "Dois amores" olha para o que os jovens querem e desejam para além e apesar da desigualdade social e da violência. Paulo Lins quebra com um ciclo da invisibilidade, mostrando que por trás de uma vivência que precisa pensar o que vai e se vai comer amanhã, existe um sujeito travando uma luta pelo direito de viver a subjetividade de ser humano. A saga em busca do tênis maneiro é uma metáfora para a busca de uma vida maneira onde se possa ter pelo menos o mínimo para viver com dignidade.

Queriam ter grana, parece que rico já nasce de tênis caro para não sofrer. 

A localização da história bem no período da adolescência ajuda a abrir diversos outros campos de interpretação para o livro. Em "Dois amores" a adolescência se torna um lugar por conta de todas as suas nuances, urgências, necessidades e descobertas. É uma fase onde corpo e mente estão a ponto de formar uma explosão, como uma supernova que poderá definir o trajeto de uma vida. 


Paulo Lins nos diz que "todo carioca é povo de rua" e explora muito bem a cultura, os costumes, os maneirismos e a linguagem do povo pobre do Rio. O autor mescla uma linguagem por vezes ácida e dura com uma prosa poética sensível e bonita que nos faz "saber as cores todas do pega-varetas."

Ganharam dois pares de tênis. Sujos, suados, deitaram em colchonetes imundos já de tênis novo no pé.