Suíte Tóquio da Giovana Madalosso (Editora Todavia, 2020) é um livro que começa sem segredos. A primeira frase nos diz: "estou raptando uma criança." A partir daí, é quase impossível não embarcar em umas boas horas de dedicação à leitura, que a cada capítulo vai ampliando as vivências pessoais de duas mulheres de universos completamente diferentes e que se ligam pela condição de mulher e pela forma, também diferenciada, de como vivenciam a maternidade. Uma maternidade que ganha outras dimensões e nos convida a pensar além do que está posto, uma vez que por trás de toda mãe está uma mulher forjada por questões muito mais amplas que os papéis de gênero e que leva em conta que ser mãe também é uma construção social. 


Maju trabalha para Fernanda. É babá da pequena Cora. Enquanto Maju sonha com a possibilidade de ser mãe, Fernanda delega quase que todas as funções do que se espera de uma mãe dedicada a Maju. É assim que cresce um amor maternal entre a menina e a babá. Já Fernanda dedica toda sua atenção ao trabalho, do qual é muito bem sucedida e a um caso extra conjugal. 


Partindo dessa premissa de uma relação empregatícia, Giovana Madalosso constrói de forma muito inteligente uma narrativa que esbarra em questões sociais que são um retrato do nosso país. Maju praticamente molda toda sua vida de acordo com as necessidades de Fernanda e Cora, a ponto de, entre outros tantos absurdos, se estabelecer um momento de "visita íntima" entre Maju e seu companheiro, para que ela pudesse realizar o sonho de engravidar. É uma relação que esbarra na prisão e na posse. O próprio título do livro escancara essa espécie de exploração da elite com a classe trabalhadora. Suíte Tóquio é o apelido que Fernanda dá ao quartinho de empregada de Maju. Nome colocado como uma forma da patroa se sentir melhor, mesmo colocando-a em um cômodo apertado. 

Para compensar, transformei aquele quarto de empregada num lugar claro, descolado e dotado de amenidades como tevê e frigobar, um quarto que poderia muito bem ser a suíte de um hotel japonês. E por isso, e para me sentir menos escravocrata, batizei o cômodo de Suíte Tóquio.

 Fernanda também apelida as babás do bairro de "o exército branco" em referência ao conhecido uniforme que as babás dos bairros mais ricos usam no horário de trabalho. As ruas e as pracinhas tomadas por uma legião de babás que dedicam todo seu tempo a cuidar dos filhos dos patrões. 


Ficamos diante de duas maneiras distintas de pensar a maternidade. Maju aparenta ser uma mulher que doaria toda sua vida à criação dos filhos e Fernanda já se apresenta como uma mulher com necessidade de viver experiências para além da maternidade. Existe uma inadequação a esse posto de mãe e ela se encontra em um estágio onde consegue, não sem uma dose de culpa, questionar o lugar em que a mulher é colocada a partir do momento que se torna mãe.

Apesar de exausta, não consegui dormir. Fiquei pensando de onde vinha a raiva que a minha filha sentia de mim. Uma raiva por ser subjugada, talvez a mesma que eu sentia por ser subjugada pelo papel de mãe.

Fernanda escancara certos tipos de insatisfações e questionamentos que para muitos sequer pode passar pela cabeça de uma mãe. Ainda é um grande tabu pensar na figura da mãe como um ser humano dotado de particularidades. A sociedade quer crer na sacralização da maternidade e qualquer discurso que coloque em risco esse olhar sagrado não é visto com bons olhos. Sendo assim, o livro presta um grande serviço ao dar voz a esse lado vulnerável que as mulheres precisam enfrentar, mostrando uma personagem que talvez nem fosse mãe caso não existisse tanta cobrança social em torno dos papéis que precisam ser desempenhados pelas mulheres. 


"Suíte Tóquio" fala sobre os desafios de ser mãe para a mulher da classe média e da classe média baixa, mostrando algumas semelhanças e como as dificuldades aumentam quanto mais frágil essa mulher for no âmbito social. Criando esse pano de fundo de uma mulher que quer muito ser mãe e não consegue e de uma mulher que é mãe mas não consegue se adequar ao modelo do que se espera, Giovana cria uma história cheia de nuances e de frestas para se pensar em diversos outros recortes sobre a vivência feminina.


Maju decide sequestrar Cora e essa decisão parece ser um acerto de contas com sua vida, com sua história e com tudo o que lhe foi negado, sendo que uma parte dessa negação surgiu com uma certa manipulação de Fernanda, que através de seu poder aquisitivo criava situações para que Maju desistisse de sua própria vida para cuidar de outra família.


Algo interessante no livro é que por mais que trate nitidamente dos abismos sociais que nossa sociedade é formada, sua intenção não é de encontrar culpados ou definir quem é o vilão da história. "Suíte Tóquio" nos apresenta a realidades distintas e a algumas das circunstâncias que fizeram as coisas serem como são. Enquanto Maju enfrenta a estrada com Cora e passa por várias situações inusitadas, conseguimos sentir compaixão pela sua história e o mesmo acontece em relação a Fernanda.


O livro vai intercalando os pensamentos de Maju e de Fernanda e tanto a voz narrativa de Maju, quanto a de Fernanda vai nos mostrando perspectivas diferentes do que é ser mulher, do que é ser mãe, das relações de trabalho, das vivências amorosas, dos sonhos, dos desejos, das perdas. Quando nos coloca para refletir sobre essa idealização que existe em torno das relações de gênero e principalmente sobre o que é ser mãe, Giovana cria uma oportunidade interessante de debate sobre a condição das mulheres e inclusive o fato de que nem toda mulher precisa ser mãe.