Minha Luta 1: a morte do pai de Karl Ove Knausgård (Companhia das Letras, 2015) é um romance grandioso, nos moldes do que o próprio autor sempre sonhara em escrever. Exatamente aí que mora a grande surpresa do livro, pois Karl parte da sua própria história de vida para escrever uma grande saga. O que poderia ser apenas presunção se tornou uma autobiografia sensível, corajosa, reflexiva e sincera que transporta os leitores para pensamentos sobre vida e morte, família, carreira, amores, decepções, vícios, música, amizade, literatura e outras inúmeras questões que cabem dentro de uma vida. Nesse primeiro volume Karl Ove explora minuciosamente sua relação com o pai. Somos colocados diante das vivências problemáticas de um filho que sempre quis entender um pai completamente fechado, por vezes agressivo e insensível. Em "A morte do pai" somos cúmplices do autor. Por vezes parece que estamos escondidos ouvindo todas as suas sessões de terapia e tentando entender junto com ele as cicatrizes que essa relação provocara. 


A morte do pai inicia dizendo que: "Para o coração a vida é simples: ele bate enquanto puder. E então para." É uma ótima introdução de livro que se conecta de forma inteligente com a última frase do livro. Na sequência, Karl faz um relato sobre um corpo que morre e como esse processo se dá conforme a natureza dita. Ele o narra com paciência, detalhismo e por mais que a gente não queira entendê-lo assim, com muita calma. Quando chega a hora de um corpo se desligar o processo é o que é. Assim como a vida obedece a sua própria regra. A introdução da obra, assim como seu título, nos prepara para uma morte que virá. Enquanto o autor nos entrega a vida, a morte fica como um pássaro empoleirado no nosso pescoço.


O autor faz também uma discussão interessante sobre como lidamos com a morte. Ele chega a exemplificar que talvez existam duas concepções de morte que nos rodeia. Estamos acostumados com notícias sobre mortes, sobre tragédias e muitas vezes este assunto, quando visto de longe, é quase um entretenimento. Mas quando a morte encosta a questão muda. Karl dá um ótimo exemplo dizendo da nossa aversão, medo ou susto diante de um cadáver que nada mais que a consequência da morte. 


Pode, portanto, parecer que a morte se divide em dois sistemas distintos. Um é associado ao ocultamento e à discrição, à terra e à escuridão, o outro tem a ver com a abertura e a leveza, com o éter e a luz.


Karl Over nos conta sobre suas vivências e de grande parte das pessoas que de alguma forma foram importantes em sua caminhada. Sendo assim, os personagens da obra são sua própria família, seus amigos, conhecidos, namoradas e até as músicas que embalaram as diversas fases de sua vida. Mas a relação com o pai é o grande norte do livro. Ao mesmo tempo que é uma autobiografia, torna-se também uma auto investigação sobre quem era esse pai, o porque dele não se enquadrar no estereótipo do pai herói e muito pelo contrário - por ter sido um pai que muitas vezes aflorou o ódio dos filhos. Karl tem um irmão mais velho chamado Yngve Knausgård mas durante grande parte da obra ele é apenas citado como uma lembrança, exatamente por ter "fugido" da relação com o pai na primeira oportunidade. Os dois voltam a se conectarem com a morte desse pai que em nenhum momento sabemos o nome. 

Eu tinha oito anos naquele fim de tarde, meu pai trinta e dois. Embora até hoje eu não possa afirmar que o compreendia ou sabia que tipo de pessoa ele era, o fato é que agora sou sete anos mais velho que ele na época, e isso torna mais fácil entender certas coisas. Por exemplo, como é abissal a diferença entre nossas vidas. Enquanto meus dias eram repletos de significado, cada passo levando a uma nova oportunidade, e cada oportunidade me preenchendo, de um jeito hoje difícil de entender, o significado dos seus dias não se limitava a eventos individuais, mas abrangia áreas tão extensas que não era possível compreendê-las senão em termos abstratos. 

Durante todo o livro percebemos o quanto Karl Ove ansiava, as vezes sem perceber, a oportunidade de ocupar o lugar de filho, algo que não era correspondido. Não podemos dizer que seu pai não amava os dois filhos, mas existia no íntimo daquele homem um entrave do qual ele não conseguia se livrar e nem expressar de uma forma além de uma espécie de indiferença. Esse algo o acompanhou durante toda a vida e também o levou a morte. Karl Ove está sempre pelos cantos observando o pai de forma sorrateira, com medo de que o mesmo perceba. É como se ele esperasse pelo momento em que o pai deixaria escapar por acidente os motivos de sua reclusão afetiva. 


Karl Ove fala pouco sobre sua mãe, mas quando fala é com muito carinho e respeito. Por conta de sua profissão ela passa muitos dias longe de casa. Quando fala da mãe ele diz que a sua presença muda a atmosfera da casa e sua ausência o obriga a ter alguns momentos de interação com o pai. Assim, Karl Ove passa a aprender na medida do possível a ler seu pai. 

Eu conhecia seus estados de ânimo e, havia muito tempo, aprendera a prevê-los, com a ajuda de uma espécie de sistema subconsciente de categorias, me dei conta mais tarde, no qual a relação entre algumas constantes bastava para determinar o que me esperava, de modo que eu teria como me preparar. Uma espécie de meteorologia da mente... A velocidade do carro subindo em direção à casa, o tempo que ele levava para desligar o motor, pegar suas coisas e descer, a maneira como olhava em torno ao trancar a porta do carro, as nuances dos diversos ruídos que provinham do hall de entrada quando ele tirava o casaco, tudo era um sinal, tudo podia ser interpretado. 

Acompanhamos tantas fases de Karl Ove que nos sentimos íntimos. Conhecemos diversas músicas e bandas que embalaram sua adolescência, as primeiras paixões, a descoberta da bebida e do cigarro, o afloramento dos desejos sexuais, as tentativas desastrosas de formar uma banda de rock. A música se apresenta como uma parte importante dessa autobiografia e também como uma forma de Karl Ove expressar a sua visão de mundo. 

Pois além dos meus ideais políticos eu tinha outros, ligados à música, que eram muito diferentes de aparentar ser cool, o que, por sua vez, tinha a ver com a época em que vivíamos, era aquilo que precisava ser expresso, e não o lado relacionado às paradas de sucesso, às roupas de tom pastel e aos penteados com gel, pois esse era o aspecto ligado ao comércio, à superficialidade e ao entretenimento, não, a música que precisava ser expressa era a inovadora mas consciente da tradição, profunda mas esperta, inteligente mas simples, ostensiva mas genuína, a música que não era dirigida a qualquer um, que não vendia muito, mas que expressava as experiências de uma geração, da minha geração.


É muito interessante a forma como o autor descreve também a importância da escola para sua socialização. A escola para Karl não era apenas um lugar para aprender mas onde ele também desempenhava um papel, se sentia alguém. "Nas aulas era diferente... e lá eu desempenhava um papel, tinha um lugar, podia falar, responder a perguntas, debater, resolver exercícios, ser alguém." As aulas de norueguês também eram momentos especiais para ele e onde começou a entender o poder da palavra e que realmente gostava de escrever. "Com o norueguês... eu o associava aos escritores de vida boêmia, além disso não era matéria possível de decorar, era algo mais, um sentimento, um talento natural, requeria personalidade."


 O tempo do livro não é linear, portanto, em momentos Karl Ove relata fatos e lembranças de sua infância, para em seguida falar um pouco da adolescência e suas vivências no colégio, como pode falar também de sua vida adulta e sua busca pela escrita de um grande romance e de rompante, como num fluxo de pensamento voltar para a infância. Como leitores, conseguimos acessar um recorte amplo da vida do narrador, acompanhando sua leitura sobre os passos de seu pai e de um Karl Ove num tempo presente, falando sobre a experiência de ter seus próprios filhos. 


Sua atuação enquanto pai e escritor passam a tomar conta da escrita. Karl Ove reflete sobre os desafios da paternidade e como parece temer que a rotina incessante de criar os filhos possa jogar seus objetivos como escritor para um segundo plano. Lemos sobre um pai carinhoso mas que também não esconde sua insatisfação com as mudanças da paternidade. Karl não nos apresenta uma ideia romântica sobre ser pai, ele expõe um outro lado que pouco se fala pelo medo do julgamento.

Sempre tive uma grande necessidade de estar sozinho, preciso ter meu quinhão de isolamento, e, quando não consigo, como nos últimos cinco anos, a frustração que surge pode às vezes se transformar em pânico ou agressividade. E, quando aquilo que me levou para a frente durante toda a vida adulta, a ambição de um dia escrever algo brilhante, de algum modo se vê ameaçado, meu único pensamento, que me corrói as entranhas, é que preciso fugir. O tempo está escapando de mim, escorrendo entre meus dedos como areia, enquanto eu... faço o que? Limpo o chão, lavo roupa, preparo o jantar, faço faxina, compras, brinco com as crianças em playgrounds, trago-as para casa, dou banho nelas, cuido delas até a hora de dormir, ponho-as na cama, penduro roupas no varal, dobro outras e guardo nas gavetas, arrumo a casa, arrumo a mesa, cadeiras e armários. 

Karl Ove relata sobre um viés da dessacralização da paternidade, e se expõe como um pai que sente raiva e perde o controle. Fazendo isso o autor vai se aproximando cada vez mais de um suposto motivo da impessoalidade de seu próprio pai. Se existe um molde ou uma regra do que é ser pai o seu não a seguiu e ele também parece não estar trilhando o caminho que geralmente se espera. Percebemos um confronto interno de Karl Ove em ainda querer entender o seu pai e também de não repetir o que ele fizera. Acontece que as implicações que ter um filho gera acaba o aproximando cada vez mais de uma personalidade que ele teme. 

Não tinha consciência de nada disso antes de ter filhos. Achava que tudo estaria bem se eu fosse bom para eles. O que é mais ou menos verdade, mas nenhuma das minhas experiências anteriores me preveniu da invasão de privacidade que ter filhos implica. A intimidade extrema que temos com eles, a maneira como nosso temperamento e humor, por assim dizer, se mesclam aos deles, tanto que nossos defeitos deixam de ser particulares, não podem mais ser encobertos, mas de certo modo assumem uma forma exterior e se voltam contra nós.  

A explosão desses dilemas é também o que serve de munição para Karl e sua profissão de escritor. A busca por entendimento e por dar sentido a alguns aspectos da vida só encontra berço na escrita. Sendo assim, o livro apresenta reflexões muito interessantes sobre a formação e o processo de escrita de Karl Ove. Com o tempo ele vai percebendo que sua própria vida é inspiração para a escrita e que suas grandes questões passam por sua história familiar. O ato de escrever passa a representar uma forma de resistência. "Resistir é a única  coisa que a vida me ensinou, sem jamais fazer perguntas, incendiando toda essa angústia através da escrita."


Com o tempo, ao relembrar as atitudes do pai, Karl Ove vai também percebendo que sempre existira uma sensação de não pertencimento ao redor de seu pai, como uma aura que quase podia ser vista e tocada. Era um homem que vivia sempre recluso e incomodado com algo. Essas percepções vieram até Karl ao relembrar os fatos após adulto e algumas questões passaram a fazer mais sentido.

De certo modo papai era muito grande para aquela mesa, pensei. Não fisicamente, havia espaço sobrando para acomodá-lo, era mais como se ele não se adequasse àquele lugar. Havia alguma coisa com ele, ou com o que emanava dele, que não combinava com aquela mesa. 

Os momentos em que o pai esboçava algum tipo de fragilidade eram raros e um episódio que fica marcante no livro acontece em uma tarde, quando Karl Ove chega em casa e o flagra sentado na poltrona ouvindo uma música e chorando. Ele se retira do ambiente antes que o pai perceba e passa a carregar a sensação de que vira algo que não deveria ter visto.

 

Karl Ove olha para sua realidade, usa da percepção do que está em volta, dos sons, das sensações, do caos e da imprevisibilidade para encontrar seu propósito na escrita. "É notável a semelhança entre os extremos, ao menos num certo sentido, pois, tanto no caos absoluto como num mundo rigorosamente regulado e cadenciado, o indivíduo não é nada, a vida é que é tudo." Com a morte do pai Karl se vê mais uma vez diante do encontro de extremos que se completam, pois é impossível falar de vida sem falar de morte. 


As circunstâncias da morte de seu pai são angustiantes. Depois de anos de um afastamento natural e auto protetivo os irmãos Knausgård se reencontram com o passado e mais uma vez precisam lidar metaforicamente e literalmente com a sujeira deixada pelo seu pai. Enquanto Karl Ove tenta se convencer de que não sente nada as lágrimas que correm sem controle pelo seu rosto dizem o contrário, mas dessa vez a morte acontece no plano real e se torna uma oportunidade para fechar ciclos. 

Ah, a única coisa que eu podia fazer era limpar. Esfregar e esfregar. Lavar sem parar. Ver como cada azulejo ficava brilhando de limpo. Imaginar que tudo que fora destruído ali seria recuperado. Tudo. Tudo. E que eu jamais, em nenhuma circunstância, iria acabar da mesma forma que ele acabara. 

Como a série Minha Luta é extremamente confessional Karl Ove teve que lidar com a insatisfação de sua família que não queriam que os livros fossem publicados. A série se tornou um bestseller na Noruega e alçou seu nome para a fama internacional. Apesar de ser uma autobiografia, a forma como Knausgård escreve nos prende como qualquer ótimo livro ficcional. Sua escrita é viciante a ponto de nos prender do começo ao fim numa trama que nada mais é que o dia a dia de vidas que as vezes são ordinárias, as vezes extraordinárias e por isso fascinantes. 


Criei uma playlist no Spotify com todas as músicas, bandas e álbuns que são citados no livro: