Risque esta palavra da Ana Martins Marques (Companhia das Letras, 2021) é um livro de poesias incrível. Ele é dividido em quatro partes: "A porta de saída", "Postais de parte alguma", "Noções de linguística", "Parar de fumar". Em toda a obra encontramos uma predominância do olhar sobre a palavra escrita, a palavra falada e diversos outros aspectos que acabam por se tornarem manifestação da nossa relação com as letras. A palavra aqui serve como suporte para o texto poético e também como uma forma de pensarmos sobre memória, afetos e tudo que nos rodeia. Ana Martins Marques transpõe para o papel seu olhar inquieto sobre tudo e o faz com a genialidade de uma das poetas mais celebradas da atualidade.
Risque esta palavra é um livro ideal para quem gosta de pensar a poesia enquanto forma e também para aqueles que gostam de refletir sobre a palavra, seus significados e a importância das mesmas para nomeação do mundo e como o interpretamos. É um trabalho primoroso sobre metáfora, representação e linguagem. "Toda fala nasce com a cicatriz do silêncio que foi quebrado." Com essa palavra que é onipotente e onipresente a autora vai construindo textos contemplativos que se debruçam sobre a razão de ser das palavras.
"[...] embora em torno das coisas/ sempre se ajuntem palavras/ como cracas no casco/ de uma embarcação antiga [...]"
Ana Martins Marques vai também explorando a força das palavras fazendo uma relação com a força do tempo e sua ação sobre as coisas. Então estamos diante de poemas que detêm muita atenção sobre coisas e objetos, como no texto que diz que "[...] um poema não é mais/ do que uma pedra que grita [...]" E além de direcionar atenção para os objetos, existe um olhar para diversos sentimentos e também para a memória e o esquecimento.
Porque um barco volta a ser madeira
e mesmo uma casa volta a ser pedra
porque as coisas tecidas um dia se destecem
porque não é eterno o amor entre as coisas
porque mesmo o vidro mesmo o metal
perecerão
Embora haja essa predominância sobre a exaltação da palavra, o livro também recorre a outras temáticas. Não podemos nunca dizer que um livro poético é sobre uma coisa só, uma vez que assuntos se encadeiam e também estão suscetíveis a ir até onde a experiência de cada leitor levar. Vamos encontrar poemas sobre diversos tipos de vivências e um deles entrou na lista dos meus preferidos por ter tocado de forma muito especial em um processo que tenho vivido:
Fazer as malas é tarefa impossível:
aquele que ainda não partiu
tem que colocar na mala
aquilo de que precisará
aquele que vai chegar
A terra prometida a um
será no entanto entregue
a outro
As camisas que não cabem
empilhadas sobre a cama
servem perfeitamente
naquele que vai partir
mas deverão vestir
aquele que vai chegar
A passagem comprada por um
será usada por outro
e de seu próprio álbum de família
olharão para ele
parentes de outra pessoa
Quem está de partida
arruma a mala
de um desconhecido
Um exemplo dessa diversidade de temas do livro é a última parte "Parar de fumar", onde Ana Martins Marques faz uma espécie de ode ao cigarro. "[...] o que fazer agora/ com as mãos/ cegas?/ o cigarro é parente/ do lápis [...]." Aparentemente Ana foi fumante e nessa parte do livro ela parece ainda se despedir do cigarro, explorando parte do que o ato de fumar pode significar para um fumante. Sabemos bem os males que o fumo acarreta para a saúde, mas o que a autora faz aqui é uma exploração do cigarro enquanto âncora para manifestações íntimas que precisam encontrar razão de ser e de estar onde estão. Ela escreve sobre um cigarro que "era então sobretudo um modo de ocupar/ as mãos/ e elas/ poderiam/ - ah, sim/ como poderiam-/ fazer coisas ainda/ piores."
A gente termina a leitura de "Risque esta palavra" já querendo reler, pois são vários os poemas que pedem revisitação e leitura em voz alta, além da necessidade de conversar com outros leitores sobre a obra. O texto de Ana Martins Marques é sensível, acessível e de imensa qualidade. Uma ótima pedida para quem gosta de poesias e para todos que ainda não descobriram que gostam.
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