Como se fizesse um cavalo da Marina Colasanti (Pulo do Gato, 2012) é um livro composto por dois textos que foram escritos para Conferências de leitura. Foram lançados em formato livro pela Editora Pulo do Gato dentro do selo Gato Letrado "que apresenta títulos inéditos no Brasil sobre temas relacionados à cultura da escrita. São livros que questionam e promovem reflexões sobre a importância da leitura, particularmente a literária, e que incentivam a formação de leitores.


No primeiro texto "Como se fizesse um cavalo ou avaliando minha dívida com a leitura" Marina faz uma reflexão sobre quem ela seria se retirasse de sua vida todas as vivências e experiências como leitora. Como seria se tivesse que apagar todos os livros da memória? Para tanto a autora parte da seguinte declaração:

Conta-se que certa vez perguntaram a Michelangelo - acho que foi a ele, e não vou verificar agora - como fazia para esculpir um cavalo. É simples, teria respondido o artista, pega-se um bloco de mármore bem grande, tira-se tudo o que não for cavalo, e o que sobra é ele, o equino. Seguindo o seu exemplo, vou desbastar do bloco da minha vida todas as leituras, tirar os livros todos. O que sobrar será o que eu teria sido sem eles, e me dará a justa medida do que fizeram por mim. 
A partir daí, Marina vai desbastando todos os livros que fizeram parte da sua formação leitora. O primeiro golpe acerta em cheio os contos de fadas que chegavam através da voz de sua mãe ou de sua babá. "Havia sempre um livro presente e, se não eu própria que lia, o que eu ouvia não era oralidade, era a transmissão de uma narrativa escrita. Esses contos estão plantados  onde tem início a minha memória." E se desfazendo dos contos de fadas, Marina também estaria se desfazendo de cavaleiros, damas, aldeões, duendes, velhinhas bondosas e más, pastores, animais falantes, entre outros personagens e seres que são explorados por esse gênero. Os contos de fadas, que então serviam para ampliação de sua imaginação e campo simbólico, agora já não existiriam e só restaria à menina Marina "pular no sono de pés juntos, como quem cai dentro de um poço."

Após se despedir da primeira linguagem simbólica que recebeu da literatura, Marina começa a abrir mão dos livros de aventura que lia com tanto entusiasmo. Nada de chapéus emplumados, capas, espadas,  cavalos, carruagens, mosquetes. E também nada de piratas.

Homem de perna de pau passaria a ser para mim apenas deficiente físico, gancho só serviria para pendurar carne no açougue, uma prancha suspensa sobre a água nada mais seria que um trampolim de piscina.
Fazendo esse exercício junto com Marina, acabamos nos remetendo também às lembranças de nossas próprias vivências leitoras e como a vida poderia ter tomado um rumo diferente sem a presença dos livros. No caso de Marina então, que diz em alto e bom som que os livros lhe deram tudo que tem, essa não presença de livros fundadores para sua formação, poderiam inclusive, fazer com que ela seguisse uma outra carreira e hoje não teríamos sua vasta produção literária para apreciar. Toda a obra de Marina carrega muito daquilo que leu durante toda a vida e nesse texto para a Conferência ela cita várias de suas produções que carregam essa influência simbólica. 

O texto segue com Marina dando golpes fortes no mármore de seu histórico de leitura. Vão caindo por terra personagens, lugares fictícios, expressões e ensinamentos. Uma adolescência permeada pela leitura e apreciação da poesia e do contato com grandes poetas já não existe mais. Os mitos gregos, que antes enchiam suas fontes de ninfas, bosques e deuses, já não existem mais. Os romances de amor romântico descobertos na adolescência já não são motivos de suas descobertas e suspiros. Até mesmo aqueles livros que foram lidos e que logo depois já nem se lembrava mais dele, ou seja, aqueles livros que não moveram sua paixão leitora e que serviram como leitura preparatória, foram destroçados nessa quebra do bloco de mármore. 

Um grande adeus às grandiosas obras russas, um adeus à concisão e uso das vírgulas aprendido com os americanos. Tirando os livros, chega um momento que é necessário também tirar pessoas. Colasanti começa a se desfazer de todos os escritores que fizeram parte de sua vida como amigos próximos. Em um golpe só teria que se desfazer de Bandeira, de Drummond, de Clarice. Chegando a esse nível a autora se pergunta: o que restaria então depois do apagamento de todas essas vivências para sua vida prática e principalmente para sua imaginação e relação simbólica com o mundo? É um texto genial, pois encontra uma solução de fácil visualização do impacto da não leitura na vida de uma pessoa que teve a oportunidade de ser formada pelos livros e pela leitura. 

O segundo texto, intitulado "O livro, entre Barbie e a longa noite" foi apresentado no Congresso Internacional Lectura 2007: Para leer el XXI Por el mejoramiento humano, em Havana, Cuba. Marina Colasanti faz reflexões corajosas sobre o livro como produto e o mercado editorial. Ela joga na roda a questão: de que livro estamos falando quando dizemos LIVRO? Com isso chama atenção para o fato de que a entidade livro se entrelaça com questões diferenciadas, que livros são criados para atingir diferentes públicos e desempenhar funções diversas. Existem livros que não são feitos para um grupo de pessoas, mas que podem se encaixar nos anseios de outro. 

Tão diversos, e voltados para públicos tão diferentes, esses livros todos constituem, no seu conjunto e cada um por si só, um fato cultural. Pois todo livro, seja ele qual for, carrega em si elementos reveladores da cultura do seu tempo. No livro escrito hoje, encontramos o olhar moderno sobre o mundo, mesmo quando voltado para outros tempos.

Marina analisa o livro pela ordem do mercado e os prós e contras que advém disso. Como por exemplo, a questão de editoria, que antes era uma atividade executada até mesmo pelo proprietário de uma editora, sendo os editores "figuras de proa no mundo literário." Hoje temos diversas outras formas de editar e vender livros, sendo o mercado editorial algo que está em constante processo de mudança e adequação a novas realidades para garantir o lucro. Existiam editoras que antes eram verdadeiros centros de fermentação cultural, que contava com participação efetiva dos escritores, e hoje, com o surgimento dos grandes conglomerados editorias os editores quase que perderam o rosto. 

O temor que nos habita, e que deu origem ao tema deste encontro, nasce dessa troca de comando na navegação livreira, e prossegue até chegar ao triplo esmagamento gerado pelos grandes grupos que manobram o mercado editorial; pela massa espantosa e crescente de livros que, em velocidade cada vez maior, é atirada no mercado; e pela falta de qualidade de grande parte desses livros. 
A análise do mercado editorial segue pelas próximas páginas, fazendo discussões sobre a mudança de função do editor de livro durante os anos, as estratégias de divulgação e conquista do mercado de pequenas e grandes editoras, a função da crítica especializada (como a dos jornais) e a ascensão dos blogs literários. Os desafios das livrarias perante uma explosão de publicações e dos escritores que precisam entrar numa espécie de competição por um lugar de destaque nas vitrines das livrarias. 

Pressa e quantidade condenam à escuridão e ao silêncio inúmeros livros de qualidade que, de venda mais lenta e não encontrando lugar na mídia superlotada e manipulada, atravessam o tempo da sua breve vida desconhecidos do grande público. 

Em ambos os textos, uma questão que emerge é a da qualidade. Marina Colasanti defende uma relação entre leitores e leituras que possa promover transformações rumo a formação de leitores críticos e que possam assim, estabelecer escolhas conscientes do que está em seu campo de desejo. O mercado editorial é vasto, trabalha sob demanda e para que sua demanda esteja no radar é necessário trabalhar no que a Marina chama de "educar o gosto". 

Há vários meios para isso. O melhor e mais antigo é ainda aquele que todos nós conhecemos: educar o gosto desde a infância para que mais leitores exijam obras literárias de qualidade e obriguem o mercado a fornecê-las.