Vista Chinesa da Tatiana Salem Levy (Todavia, 2021) é um livro que trata de um tema delicado: o estupro. Para trata-lo é necessário analisar a violência que o ato em si carrega e uma estrutura social que faz com que alguns homens se coloquem no lugar de donos dos corpos femininos. As mulheres enfrentam a muitos séculos diversos tipos de violência e o estupro é uma das manifestações mais hediondas dessa realidade. Em "Vista chinesa" Tatiana parte de uma história real, vivida por uma de suas melhores amigas e acaba desenhando para o leitor, com extremo detalhe, os momentos de horror vividos pela vítima, uma certa ineficiência da polícia para enfrentar esse tipo de crime, o sentimento de vergonha e culpa em que uma mulher pode se enredar devido ao trauma e a vivência em uma sociedade machista e a importância de uma rede de apoio. Após a violência a mulher ainda precisa, ao mesmo tempo, encontrar meios de superar as dores internas e externas do crime e lutar por alguma justiça possível. É uma leitura que dói e que coloca o leitor frente a frente com um tema que ainda é tratado como tabu e por ser assim tratado acaba impedindo que muitas mulheres façam a denúncia e que estupradores continuem a espalhar o terror pelas cidades. É uma leitura que pode ser muito sensível para algumas pessoas.


O livro é escrito como se a protagonista Julia estivesse, anos depois de ter sofrido a violência, escrevendo uma carta, um depoimento para seus filhos Antonia e Martim que ainda são crianças, mas que em algum momento da vida poderão conhecer a história pela própria mãe. Julia sente a necessidade de colocar pra fora esse relato e acredita que de certa forma seus filhos sabem o que ocorreu com ela, por terem vindo de dentro do seu corpo marcado pela violação. Além da necessidade de verbalizar o que ocorreu, o texto chega nomeando tudo aquilo que precisa ser nomeado, pois se tratando de violência floreios podem não servir para muita coisa. Tatiana usa a palavra pau e a palavra boceta, pois no contexto em que pau e boceta se inserem em um estupro, não poderiam ser descritos com outras palavras. Um agressor quer a natureza mais violenta do sexo e ele não pede licença a uma vagina para isso. 


A história não é contada de uma forma linear. As lembranças de Julia vão se misturando com relatos do presente, onde ela já tem os seus filhos e de repente voltam para o dia fatídico do estupro e daí caem para algum período da sua vida onde algumas feridas já estavam cicatrizadas. Com essa estrutura o livro carrega diversos fragmentos e não perde nenhum sentido quando lidos, inclusive aumentam a nossa imersão na narrativa, pois conhecemos um pouco da Julia antes, durante e depois do ocorrido.  


O título do livro se refere à Vista Chinesa, que é um ponto turístico bastante conhecido do Rio de Janeiro. É uma estrada cheia de curvas e subidas rodeada por uma linda floresta de Mata Atlântica. Em seu topo é possível ter uma vista deslumbrante da cidade e do mar. Este lugar paradisíaco acaba se tornando o inferno da personagem do livro. Julia, uma arquiteta bem sucedida que está prestes a fechar um grande contrato com a Prefeitura do Rio de Janeiro para construção de uma obra para as Olimpíadas de 2016, decide ir correr no Alto da Boa Vista antes de uma reunião importante. Ao chegar na altura do Muro do Alívio, Julia sente uma arma encostada contra seu corpo e é arrastada para dentro da mata onde é cruelmente estuprada. 

Sem que eu tivesse intuído nada, previsto nada, sem que eu tivesse pensado, está vazio, ou avistado alguém estranho ao longe, sentido algum rastro de medo, um arrepio, uma sensação ruim, sem que eu tivesse recebido algum sinal do mundo externo, o perigo apareceu de repente nas minhas costas. Ele era baixo, forte, encostou a pistola na minha cabeça e ordenou, me segue, a voz se fundindo à da Daniela Mercury, a mão me apertando o braço, interrompendo a corrida e me arrastando para a floresta, aquela mata linda, exuberante, cantadas nos mais belos poemas, exaltada nos guias turísticos e na escolha do Rio de Janeiro como sede das Olimpíadas 2016, aquela mata que todo mundo diz que é o que faz a diferença, afinal muitas capitais têm praia, mas uma mata assim, tropical, verdejante, imensa, só no Rio, aquela mata frondosa, casa de tucanos, cobras e macacos, aquela mata que exala um cheiro doce e enjoativo de jaca, aquela mata que todo mundo admira quando está subindo a Vista Chinesa e na qual quase nunca reparo, porque quando estou correndo eu me desligo do mundo, aquela mata virou o meu inferno.

A partir daí, a autora praticamente nos coloca dentro da mente de uma mulher que teve o corpo molestado, encontrando as maneiras de lidar com a própria vida e o trauma após um episódio de violência. É impossível mensurar a dor de uma mulher estuprada e o tanto que é possível se aproximar desse sentimento está na escrita de Tatiana. São muitos os processos que uma vítima pode passar e um deles é a negação. Como uma forma de auto proteção, Julia acaba cogitando a ideia de simplesmente voltar para casa, lavar seu corpo e seguir com a vida como se nada tivesse acontecido, mas em poucos minutos vai percebendo que precisará enfrentar de alguma forma o que aconteceu.  

Encarei o esquecimento como a única forma de seguir adiante. Eu passava horas inventando estratégias para apagar a realidade dos fatos, como se eu pudesse voltar a ser a mesma Júlia de antes. Mas há coisas que, mesmo depois de terem acontecido, continuam acontecendo.

Durante o estupro o livro relata um misto de sentimentos vividos pela vítima, que vão desde uma tentativa de não oferecer resistência para que o ato termine logo, até uma tentativa desesperada de fuga, que vai do pedido interno e íntimo pela morte rápida, ao pedido também interno e íntimo pela própria sobrevivência, enquanto flashes de uma vida ainda não vivida passa pela sua mente. 

Na mata, a sensação de beirar a morte gritava. Houve momentos em que eu dizia a mim mesma, tomara que ele se satisfaça, que seja bom pra ele, que ele tenha prazer, que ele não se irrite, que ele não se decepcione, mas que ele me deixe viva.

A descrição da dor também é algo que pega o leitor de jeito e da primeira a última página vamos tentando mensurar os efeitos dessa vivência na vida de uma mulher.

Mas a dor, essa história de que uma hora a gente transcende a dor, de que a gente passa para outra esfera, comigo a dor era a presença absoluta, a dor era o corpo, o presente, a voz me dizendo, isso está acontecendo agora, a impossibilidade de escapar para outro tempo, de não estar ali.
Munido de um depoimento real de violência sexual, o romance de Tatiana Salem consegue explorar na ficção a intensidade da dor que o estupro causa. É uma dor que acaba transcendendo para a própria relação da vítima com o seu corpo, que mesmo após curado das marcas físicas da violência, acaba trazendo consequências psicológicas para a relação da mulher com seu próprio corpo, com a forma como passa a se enxergar. 

Uma outra camada explorada no livro é sobre a questão da memória, que aparece tanto ligada às lembranças que Julia tem do crime, como no seu desafio de reconhecer o criminoso por fotografias e retrato falado. Para essa segunda questão em específico, Tatiana Salem se inspirou  em uma exposição que visitou em Paris da artista Taryn Simon, com retratos de pessoas inocentes que foram presas por reconhecimento equivocado das vítimas. Portanto, além de ter que superar o seu próprio trauma, que vez ou outra pode pregar uma peça a sua memória, a protagonista do livro ainda precisa lidar com o medo de ser injusta acusando uma pessoa inocente pelo seu estupro, uma vez que a lembrança vai se diluindo. Como ter certeza de que aquele fora seu estuprador uma vez que uma fotografia e um retrato falado pode apresentar uma certa distância da realidade? 

Algo muito interessante na obra é a forma como Tatiana Salem costura a trama central com sua locação, que é a cidade do Rio de Janeiro. De certa forma a narrativa acaba fazendo um contraponto entre beleza e terror (da violência) e a cidade acaba sendo uma forma de passar o recado de que o inesperado pode acontecer, até em uma das cidades mais bonitas do mundo. A história ainda se passa num momento em que o Brasil e o Rio estavam sendo celebrados por conta da Copa do Mundo e das Olimpíadas, mas ainda assim não deixava de ser aquele Rio de Janeiro com altos índices de violência. Uma mulher é violentada em uma cidade que também é violentada pela violência urbana e a má gestão política e ambiental. 

Fico imaginando a energia e a coragem que foram empregadas na escrita desse livro. Tatiana Salem Levy, enquanto mulher, teve a capacidade de sentir ainda mais na pele o que significa uma violência como a relatada e o fato da proximidade com a vítima, Joana Jabace, aumenta ainda mais a intensidade. Escrever sobre o horror do estupro acaba sendo mais que uma composição literária, tornando-se também um instrumento de enfrentamento de algo que pouco se diz por ter raízes no medo e na culpa. Falar sobre o crime de estupro é colaborar com a noção de que nada justifica esse ato e de que a vítima nunca deve ser culpabilizada. Tatiana trouxe a sua contribuição da melhor forma que sabe fazer, com literatura. 

Há uma dose de acaso nesse fato que me destruiu e continua me destruindo? Sem dúvida. Mas há uma coisa que extrapola o acaso: o ódio daquele homem, a violência daquele homem, a permissão que ele se dava de violar o meu corpo. Isso não é acaso. Isso foi o meu encontro fortuito com o mal.

Quando Joana Jabace toma a decisão de permitir que seu nome seja revelado e que todos saibamos que essa história ocorreu com ela, consegue romper com um dos maiores estigmas jogados sob a pele de uma mulher violentada, que são a vergonha e a culpa. Com isso, demonstra que esses sentimentos não precisam ser carregados e que não pertencem a quem foi alvo de um crime, e ainda contribui com seu relato para que outras mulheres encontrem a mesma força e busquem formas de se proteger.