Carta a D. História de um amor do André Gorz (Companhia das Letras, 2018) é literalmente uma bela carta de amor endereçada a sua esposa Dorine. André foi um importante filósofo francês, autor de diversas obras e a carta chama atenção pela forma confessional, simples, sincera e extremamente amorosa com que ele coloca em palavras todo seu amor por Dorine e relembra episódios diversos da vida do casal. A obra foi concebida como uma declaração, um reconhecimento de André Gorz de como sua história com Dorine foi mais importante do que qualquer outra realização que tivera na vida enquanto pensador. 



Porque você está tão pouco presente no que escrevi, se a nossa união é o que existe de mais importante na minha vida?

André e Dorine se conheceram pouco tempo depois do fim da Segunda Guerra Mundial e se conectaram rapidamente. Como o autor salienta em várias partes do livro, Dorine era uma mulher que chamava bastante atenção por conta de sua beleza, portanto, tinha vários pretendentes a seus pés, fazendo propostas concretas de casamento. André se definia como um simples austrian jew completamente desprovido de interesse, por também não ter uma aparência que poderia se dizer atraente. Esse fato pareceu nunca importar para Dorine, que recusou todas as propostas para se casar com Gorz. 


André escreveu a carta após mais de cinquenta anos ao lado de Dorine. "Já faz cinquenta e oito anos que vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca. De novo, carrego no fundo do meu peito um vazio devorador que somente o calor do seu corpo contra o meu é capaz de preencher." Então lemos sobre sua grande paixão, enquanto narra a forma como se conheceram, as primeiras impressões, a personalidade forte e livre de Dorine, as dificuldades financeiras que enfrentaram por muitos anos, os diversos tipos de trabalho que executaram e todo o encantamento com que construíram sua própria história. 

Você está para fazer oitenta e dois anos. Encolheu seis centímetros, não pesa mais do que quarenta e cinco quilos e continua bela, graciosa e desejável. Já faz cinquenta e oito anos que vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca. De novo, carrego no fundo do peito um vazio devorador que somente o calor do seu corpo contra o meu é capaz de preencher. 


Enquanto revisita sua vida ao lado de Dorine e pensa no amor e no casamento de forma prática e também filosófica, André faz uma espécie de investigação sobre o que leva duas pessoas a se apaixonarem e construírem uma vida juntas. Se a parceria e o companheirismo que os dois construíram durante toda a vida já é algo admirável, os anos que passaram juntos também é algo notável. Podemos perceber que um dos ingredientes fundamentais para que a relação fosse tão sólida, vem do fato de que suas vidas se misturavam para além do seio familiar tradicional e se emaranhavam também pelos campos da produção artística e da construção de pensamento.

Eu necessitava da teoria para estruturar meu pensamento, e argumentava com você que um pensamento não estruturado sempre ameaça naufragar no empirismo e na insignificância. Você respondia que a teoria sempre ameaça se tornar um constrangimento que nos impede de perceber a complexidade movediça da realidade. Tivemos essas discussões dezenas de vezes, e sabíamos de antemão o que o outro iria responder. No final das contas, elas eram uma espécie de jogo, mas nesse jogo você sempre ganhava.  

André e Dorine conseguiam se unir até quando se desencontravam nas opiniões. Aprenderam a viver com laços muito bem amarrados e que foram moldados também pelos períodos de grande dificuldade que passaram juntos. 

Fomos feitos para nos proteger mutuamente contra ambos, e precisávamos criar juntos, um pelo outro, o lugar no mundo que originalmente nos tinha sido negado. Para isso, no entanto, seria necessário que o nosso amor fosse também um pacto para a vida inteira. 


 

E o pacto realmente existiu. Com o tempo Dorine descobriu que sofria de uma doença degenerativa que também se somou a um câncer. André Gorz se aposentou para dedicar todo o seu tempo aos cuidados da esposa. Quando perceberam que a situação de saúde era irreversível tomaram uma decisão que para muitos é assustadora, mas que para mim não poderia ter um desfecho mais compreensível diante da história que viveram. André e Dorine cometeram suicídio no dia 24 de setembro de 2007, deixando algumas cartas para seus familiares como uma última declaração da impossibilidade de viverem separados. Em um trecho de Carta a D: história de um amor André já dizia que "nós seremos o que fizermos juntos" e esse último ato prova que o que eles queriam ser era um casal.