A literatura em perigo do Tzvetan Todorov (DIFEL, 2020) é um livro que olha de forma ousada para questões que precisam ser analisadas quando pensamos sobre a democratização da literatura. Apesar de ter sido escrito por um escritor búlgaro que fez vida e carreira na França, conseguimos transportar facilmente as suas provocações para o contexto brasileiro. Todorov fala sobre a crítica literária, a formação em literatura das escolas, das universidades, sobre a função da literatura e como o leitor se insere nesse cenário. Mostra que uma das ameaças à literatura vem de um movimento que pouco se fala: estamos colocando-a em lugar descolado da realidade. 


Uma concepção estreita, que a desliga do mundo no qual ela vive, impôs-se no ensino, na crítica e mesmo em muitos escritores. O leitor, por sua vez, procura nos livros o que possa dar sentido à existência. E é ele que tem razão. 

É muito comum ouvirmos aqui no Brasil um discurso sobre a baixa adesão à leitura seguido de apresentação de números e estatísticas que quase não levam em conta alguns contextos fundamentais para se entender o porque e o que fazer perante essa realidade, pois o buraco é mais embaixo e falta disposição para ir até o fundo da questão. Se aqui tudo se esbarra no grande abismo da desigualdade social e na falta de comprometimento político com a cultura e a educação, em "A literatura em perigo" conhecemos um outro contexto que vai de encontro à formação de profissionais dentro das áreas correlatas à literatura. Ainda assim, conseguimos transportar essa discussão para cá, uma vez que também vivemos um processo parecido quanto à formação de profissionais. 


Tzvetan Todorov durante todo o livro bate na tecla da literatura que se debruça sobre a realidade, munido do fato de que somos humanos e todas as nossas expressões e criações advém dessa humanidade. Quando a escola, a academia e os profissionais do livro passam a tratar a literatura como algo a ser dissecada apenas no campo da estrutura e da sintaxe é quando ela deixa de olhar para literatura como expressão do próprio ato de viver e, portanto, deixa de olhar para os leitores. A literatura tem o poder muito maior do que o de apenas formar críticos, linguistas, professores e escritores - ela tem o poder de formar culturalmente um cidadão, tornando a leitura um instrumento de análise sobre o ser e estar no mundo. Quando o próprio Todorov olhava para sua relação com a literatura dizia que: 

Hoje, se me pergunto por que amo a literatura, a resposta que me vem espontaneamente à cabeça: é porque ela me ajuda a viver. Não é mais o caso de pedir a ela, como ocorria na adolescência, que me preservasse das feridas que eu poderia sofrer nos encontros com pessoas reais; em lugar de excluir as experiências vividas, ela me faz descobrir mundos que se colocam em continuidade com essas experiências e me permite melhor compreendê-las. 

Vindo do contexto de uma Bulgária regida por um regime totalitário, que também esbarrava naquilo que se podia ou não consumir de literatura, Todorov agarrou com todas as forças a oportunidade de estudar na França, acreditando que assim poderia saciar sua sede de explorar a literatura para além da materialidade do texto e suas formas linguísticas. Como falar de literatura sem ter de curvar às exigências da ideologia dominante?


Com essa expectativa, de enfim estudar sobre o que realmente desejava é que Todorov chega à França. "Sem cair numa admiração beata, alegrava-me constatar que a França era uma democracia pluralista, respeitadora das liberdades individuais." Com o tempo vai percebendo que ali também encontraria algumas dificuldades em se dedicar às temáticas que realmente queria. Se na Bulgária o que o impedia era um regime totalitário que censurava o pensamento crítico, na França o que encontra é um currículo que se viciou em estudar o que um crítico tem a dizer sobre uma obra do que a obra em si. A diferença é que ali ao menos teria a liberdade de criar, propor, debater e traçar formas de se dedicar a seu campo de estudo. 

o campo da literatura se expandiu para mim, porque passou a incluir, ao lado dos poemas, romances, novelas e obras dramáticas, o vasto domínio da escrita narrativa destinada ao uso público ou pessoal, além do ensaio e da reflexão. 

Todorov critica veementemente essa forma de estudo que chama de "maneira  ascética de falar de literatura" e deixa bem nítido seu entendimento de que os professores não são os responsáveis pelo estabelecimento dessa forma de investigação da escrita, que ela tem outras raízes que criam um ciclo de reprodução. O autor alerta também sobre a falta de humildade que caminha junto com a necessidade de ensinarmos nossas próprias teorias a cerca de uma obra. 


Tzvetan não prega o abandono do estudo aprofundado da literatura em seus estilos, assim como os fatos que compõe a história literária, o que ele defende é a recuperação de um lugar onde se tenha espaço para apreciação da leitura enquanto expressão da realidade, da cultura, do contexto social, dos nossos anseios, dúvidas, dores e amores enquanto seres sociais. O autor acredita que essa estratégia deva vir em primeiro lugar, criando assim uma aproximação verdadeiramente íntima da literatura com seus leitores, para no passo seguinte essa intimidade servir de instrumento para estabelecer uma intimidade literatura/ aluno, literatura/pesquisador, literatura/crítico, literatura/escritor. Todorov arremata ao dizer que "em nenhum caso o estudo desses meios de acesso pode substituir o sentido da obra, que é o seu fim."