Copo vazio da Natalia Timerman (Editora Todavia, 2021) é um romance que trata sobre o luto e ele se apresenta de forma a colocar o vazio em palavras. Vazio e dor passam a fazer parte da rotina de Mirela, uma mulher jovem e bem sucedida que de repente, sem a menor explicação, é abandonada por Pedro, um homem que conheceu em um aplicativo de encontros. Uma relação de poucos meses, acaba se eternizando na vida dessa mulher e se transformando em um desejo que parece ficar maior através da falta. Copo vazio tece a narrativa passeando entre alguns tempos verbais, então acompanhamos diferentes estágios da dor de Mirela ao acessarmos seu hoje, seu antes e seu depois. 


A escritora Natalia Timerman também é médica psiquiatra e esse fato acaba se espelhando em sua escrita literária, principalmente ao tratar de amor, paixão, relacionamento e abandono, temas que se conectam com nossos desejos, expectativas, alegrias e dores. Isso não quer dizer que você encontrará termos e jargões da psiquiatria na obra, apenas quer dizer que o mergulho na intimidade da personagem em sofrimento é bem escrito, profundo e sabe muito sobre o que diz. 


Terminar um relacionamento é um processo dolorido e na história de Mirela essa dor se multiplica, uma vez que ela precisa lidar com o silêncio de Pedro que um dia resolve sumir e não responder mais suas mensagens. Até então não tinha conhecimento sobre o termo e ele não é utilizado no livro, mas o ato de "terminar" um relacionamento de forma abrupta, sem explicação e desaparecendo completamente é chamado de "ghosting". É fácil encontrar artigos na internet que tratam sobre essa questão e analisam as consequências desse tipo de rompimento na cabeça de uma pessoa apaixonada. Alguns especialistas afirmam que as novas tecnologias, como os aplicativos, estão tornando o ghosting uma prática comum, uma faceta não tão nova assim das relações líquidas tão discutidas pelo Zygmunt Bauman


Agora imagina você estar completamente apaixonada, tendo a certeza de que seu último encontro com essa pessoa foi normal e sem sobressaltos como todos os outros, mas que a partir daquele último contato você nunca mais a veria. Algo que você só descobre quando não consegue mais contato. 

Percorre a memória atrás de palavras afiadas, atrás de culpa. Percorre a memória atrás de palavras afiadas, atrás de gestos que sinalizassem aquele fim, mas não encontra.


É com isso que Mirela lida, com uma presença ausente que tira sua vida do eixo, desequilibra suas emoções, implanta dúvidas, coloca sua carreira em risco e a faz mergulhar num misto de sentimentos que passam pela dor, pela humilhação e pela vergonha. Embarcamos na intimidade de Mirela em uma uma história que acaba criando identificações com "pessoas que já choraram a perda de um amor, que já foram visitadas pela dor rasgada de uma ausência abrupta, que já se sentiram mutiladas por alguém que foi embora."

Talvez o tenha amado sim, lá atrás, quando estiveram juntos, mas depois, depois não. Ou será que nunca chegou de fato a amá-lo e seu gostar, ainda embrionário, comum, então do tamanho certo, se expandiu a partir do vácuo súbito da ausência dele, assim como as leis da física?


O livro nos coloca diante de uma dor comum, que faz parte da maioria das vivências amorosas e que nem por isso deixa de ser intensa. O luto e a dor da perda de um amor é apresentado como um sentimento comum que bate de forma diferente em cada pessoa e essa é uma das riquezas da narrativa. Conhecemos a dor particular de Mirela, uma dor que tem a ver com as expectativas e o investimento afetivo que ela empregou na relação. Se a forma de se dedicar a uma pessoa é particular não tinha como a dor ser diferente. Uma dor que por mais que as pessoas digam "saia desse lugar" - a porta de saída parece estreita e pequena demais para caber o volume de dor que você carrega no momento. Viver a dor é particular e se livrar dela também.


Mirela passa por um processo longo de negação e ele começa antes mesmo de Pedro ir embora. Ele deixa muitos sinais, de forma consciente ou não, de que não está ali por completo, o que é confirmado por falas, gestos e olhares. Mirela parece algumas vezes enxergar os sinais para em seguida, como uma forma de defesa, encontrar uma justificativa, uma questão que poderia explicar aquela apatia, um traço de personalidade que explicasse os posicionamentos de Pedro. Em um trecho da obra onde eles conversam sobre as pessoas que fazem e fizeram parte de suas vidas e sobre as amizades construídas Pedro diz: 

- Eu também vejo pouco meus amigos. Mas também, morando longe não tem como. Eu fui fazendo uma turma de amigos em cada lugar e tive que ir deixando pra trás. Pelas circunstâncias da vida. 

- Um abandonador de pessoas mesmo. 

Após o abandono Pedro se torna uma obsessão e a ideia do copo vazio pode ser interpretada de inúmeras maneiras. Pedro entra na vida de Mirela em uma fase que nem mesmo ela própria botava fé na possibilidade de uma relação. Ela chega a verbalizar seu desconforto com a ideia de fazer um perfil em um aplicativo de relacionamentos. Tinha o pensamento de que aquilo era como se colocar "num catálogo de pessoas para, em troca, ter acesso a outro." e por ansiar por possibilidades diferentes de encontro. 

Imaginava que história de amor têm que ter começos poéticos, pontilhados de fatos aparentemente casuais que só depois se mostrarão parte do todo daquele encontro: o destino. Sentia-se ridícula por pensar assim aos trinta e dois anos, era uma fá frágil.

A interpretação mais forte que tive sobre o copo vazio se relaciona com a própria Mirela enquanto mulher e da Mirela enquanto um corpo. Um corpo que estava esvaziado dos anseios de uma relação, inclusive por ter saído de um namoro anterior ao Pedro e que não dera certo. E em momentos como os quais ela dizia a sua irmã "mas quem disse que eu quero estar com alguém?" - denota a sua posição de distanciamento protetivo, seu status de copo vazio, onde copo também é corpo.

Eu tinha um tesão sem tamanho e foi a primeira vez que eu engoli porra sem nojo nenhum. Achando gostoso. Amor, né? Dizem que é.


 Quando Pedro aparece seu copo se enche novamente, seu corpo volta a ser doador e receptor de desejos e de uma forma pela qual não temos controle quando acontece, para logo em seguida se esvaziar completamente mais uma vez. Pedro quebra o copo. 


O livro nos diz muito sobre a lógica dos relacionamentos e principalmente sobre as formas de lidar com aquilo que se vai independente da nossa vontade. Também nos diz sobre uma necessidade de se afirmar enquanto ser forte e dotado de ferramentas que não destruam a própria individualidade quando deixamos de dividir a vida com alguém. Abre brechas para reflexões sobre a opressão vivida pelas mulheres quando colocadas em uma verdadeira missão onde o objetivo de vida é conquistar alguém.


A gente passa a vida toda escutando que precisa ter alguém, a gente mulher, né?, e nem só escutando, a gente passa a vida toda assistindo filme de conto de fadas, novela, viveram felizes para sempre, essas coisas, a gente passa a vida toda ouvindo de mãe, de tia, de vó, de pai, a vida toda desde criança já sabendo que uma mulher precisa ter alguém, precisa ser em dupla, ter um par, senão é como se fosse menos, ou até se fosse nada, a gente não tem a chance de se perguntar, será que eu quero estar com alguém?



Vejo o copo vazio como esse alguém que precisa aprender a ser e estar no mundo independente de ser par. De ser alguém que consegue aproveitar cada etapa de uma relação, que consegue se perceber enquanto indivíduo com desejos e necessidades singulares e que algumas delas não precisam deixar de existir para atender ao outro, que consegue sair de si e se levar junto.