Enterre seus mortos da Ana Paula Maia (Companhia das Letras, 2018) é um livro onde mais uma vez a escritora abraça a vida em seu estado mais cru e contemplativo. Para tanto, ela se vale de uma temática que ainda que seja bastante explorada pelas manifestações artísticas, carrega consigo alguns tabus e uma manutenção do lugar do "não dito" ou do "não pode ser dito", que aumenta sua carga de mistério e desentendimento. A obra fala sobre a morte e mais precisamente sobre o seu resultado, a  consequência do rigor mortis, os corpos que ficam pra trás. A mensagem da obra é nítida e clama: Enterre seus mortos. 


Por mais que a escrita de Ana Paula Maia não tenha qualquer pudor em falar sobre a morte, não encontraremos um texto que denota qualquer sinal de desespero, reação que automaticamente associamos à temática, e esse é um dos pontos que mais chamaram a minha atenção. Todos os personagens que transitam pelo livro possuem uma relação íntima com a morte e com corpos mortos e esse fato agrega a cada um deles uma espécie de letargia perante o fim. Mas não confunda essa letargia com falta de empatia ou de importância. Ela parece ser muito mais a constatação de uma realidade da qual não temos controle. "Edgard Wilson nunca conheceu trabalho que não estivesse ligado à morte".


Edgar Wilson é "um homem simples que executa tarefas" e sua profissão é de removedor de animais mortos das estradas. Ele precisa lidar tanto com animais de pequeno porte, que morrem atropelados nas estradas, quanto animais de grande porte, como uma vaca, por exemplo, que se deixada no caminho pode provocar outros acidentes. Edgard executa o trabalho junto com seu colega chamado Tomás, um padre excomungado que detém um segredo e um respeito por todo tipo de corpo morto. Ele faz questão de realizar seu pequeno ritual de extrema-unção a cada animal que encontram pelo caminho. 


É interessante perceber a relação que ambos estabelecem com a própria realidade e com o trabalho que executam. Edgar é um homem que internalizou para si a responsabilidade pelo corpo morto, por cada carcaça que recolhe da beira das estradas, enquanto Tomás se detém às questões da alma e da libertação desses corpos. Enquanto Tomás faz algumas reflexões sobre cada acontecimento com que se deparam, tentando estabelecer uma relação de mínimo entendimento ou próximo ao conforto, Edgar quase não expressa suas opiniões, mas nada o demove de cumprir suas tarefas. 

Tomás não parece surpreso com o comentário de Edgard Wilson, já que o conhece há tempo suficiente para saber que ele não costuma arguir os outros; por outro lado, tem como característica ser um bom ouvinte. Como um cão que ouve a confissão do dono e pisca os olhos vez ou outra e, mal o desabafo acaba, sai a caminhar sem olhar para trás.

O livro é permeado por descrições muito fortes. Uma delas se refere ao detalhamento do processo pós morte e nos lembra o tempo todo da finitude do corpo. Ler e pensar sobre o apodrecimento, sobre o processo de decomposição, o mal cheiro que um cadáver exposto exala é algo que nos conecta a um lugar e a uma possibilidade que na maioria das vezes desejamos fingir não existir, pois diz muito sobre nossa vulnerabilidade. Edgard e Tomás manipulam esses corpos o tempo todo, seja carregando-os para dentro da caçamba do veículo que dirigem, seja despejando-os no seu destino final que é uma grande máquina que mói ossos e vísceras. 

No início tentava não encarar os animais mortos, apenas os removia. Aos poucos, percebia suas expressões faciais, por vezes fechava os olhos dos bichos imaginando que isso lhes proporcionaria algum descanso. Observava diariamente a vida evoluir para a morte.

 

O outro ponto se refere à dureza da própria realidade diante da desigualdade social. Em nenhum momento sabemos exatamente onde a história se passa, mas o que fica bem demarcado é o fato de que se trata de uma região em estado de abandono. A localidade parece ser uma via intensa de circulação de veículos apenas de passagem e que nunca param. A precariedade fica bem desenhada quando a narrativa se refere ao acesso a cuidados médicos, a serviços de segurança pública, níveis de violência e do próprio tratamento digno das pessoas que morrem. Estamos falando de uma região que possui um serviço especializado em recolhimento de animais mortos das estradas, mas que não tem qualquer estrutura para recolher os corpos das pessoas que morrem. O tratamento destinado aos animais é superior ao dedicado aos seres humanos. 


Ana Paula Maia vai trabalhando com extremos que colocam bicho e gente quase que no mesmo lugar. A narrativa nos arrasta a pensar no caráter social, político e religioso da morte e essas relações ficam ainda mais fortes quando Edgard Wilson encontra o corpo de uma mulher enforcada na floresta. O rabecão da região está inutilizado e simplesmente não existe a possibilidade de alguém recolher esse corpo. Edgard fica entre retirar o corpo da floresta ou deixá-lo ali para ser devorado por abutres que já haviam iniciado seus trabalhos.


Nesse momento, conhecemos ainda mais uma das facetas de Edgard que é sua responsabilidade perante um corpo morto. Em nenhum momento ele se preocupa se essa mulher se matou ou foi assassinada, se foi um ser digno de misericórdia ou de completo asco. Ele tem diante de si um corpo sem vida e a certeza de que "ninguém nasce só e não deveria morrer só." Percebermos que a dedicação de Edgard a sua função e que o leva também a recolher um corpo humano, algo além da sua responsabilidade, se ancora em sua própria noção de ética e moral e muito mais em seu medo de ser abandonado no momento de sua própria morte. 

Só uma coisa realmente o apavora: morrer sozinho e ser deixado para trás. O medo da própria destruição é inato a todo animal. O medo de Edgard vai além: é esse medo de ser devorado por abutres, comido ao ar livre por vermes necrófagos, de ter sua carne exposta ao vexame. 

"Enterre seus mortos" é um livro que foi minuciosamente construído para ser seco, direto e sem rodeios. O próprio título já nos remete a essa característica. Um título que é quase uma ordem. Quando Ana Paula Maia diz "enterre seus mortos" ela também faz um apelo para que olhemos para a morte com a devida atenção que esse acontecimento pede e merece. Enterrar os nossos mortos é muito mais que dar fim a um corpo sem vida, pois o ato de enterrar precisa caminhar junto com reflexão de que morte e vida são realidades indissociáveis, que todo ser vivo está passível de morrer no segundo seguinte e que "a única maneira de nascer de novo é morrendo."