Dentro do segredo: uma viagem pela Coreia do Norte de José Luís Peixoto (Companhia das Letras, 2014) narra o passo a passo do autor em sua viagem por esse país considerado o mais fechado do mundo. Além de trazer todo um histórico político sobre a situação da Coreia, José Luís irá se deter com maior detalhe a uma questão que pouco se fala sobre o país: o seu povo. Para isso, ele parte de uma abordagem bem interessante, parecida com o que Chimamanda Adichie diz sobre o perigo da história única. Um povo não é uma história só e nem uma massa compacta de vivências e experiências. Todo país possui suas belezas e suas violências, portanto, enquadrar uma nação em apenas uma característica pode trazer grandes problemas de interpretação da realidade, sendo uma das mais graves a própria desumanização de um povo. José Luís Peixoto deixa nítido o tempo todo que é contra qualquer tipo de regime ditatorial e o que move em grande parte a sua curiosidade sobre a República Popular Democrática da Coreia são as pessoas que lá vivem. 


Partindo desse olhar, o livro embarca em uma narrativa sensível, que a todo momento busca captar aquilo que não está óbvio, aquilo que não é discutido e divulgado sobre o cotidiano dos norte coreanos, sem perder de vista todas as encenações e maquiagens que são criadas pelo regime, para que os estrangeiros saiam vangloriando um país que fere gravemente as liberdades individuais. Quando José Luís parte da ideia de que um povo não é uma coisa só ele se permite perceber alguns detalhes bem interessantes sobre os norte coreanos e sua organização social. 

Atualmente, a Coreia do Norte é o país mais militarizado do mundo. Com 24 milhões de habitantes, tem o quarto maior Exército do mundo, com mais de 1,1 milhão de soldados armados, cerca de 20% de todos os homens entre os dezessete e os 54 anos do país. Em caso de necessidade, conta com uma reserva operacional de quase 8 milhões de homens. O serviço militar é obrigatório para todas as pessoas que estejam aptas fisicamente e dura um período máximo de dez anos.

A Coreia do Norte, como todo país, apresenta diversas incongruências, injustiças e formas de organização que garantem o conforto dos privilegiados em relação ao povo. A própria demonstração de força que a família Kim quer exibir para o mundo através de seu exército é um exemplo. Manter um exército dessa magnitude custa muito dinheiro e esse investimento faz com que a Coreia seja um dos países que mais sofrem com a fome. Dessa informação vem um outro contraponto. Por ser um país extremamente militarizado e com regras que beiram o ridículo, a população não tem a violência urbana como uma grande questão. José Luís Peixoto narra isso, inclusive em relação as crianças do país, que vagam livremente até por Pyongyang, a capital da Coreia. 

Nos corredores do metrô, havia muitas crianças sozinhas. Com uniforme de saia ou calças azul-escuras, casaco azul-escuro e lenço vermelho de pioneiro, iam tranquilas, dirigiam-se para algum lado. Nenhum dos livros que li mencionava este detalhe. Entre o grupo de estrangeiros com quem viajei não ouvi ninguém referir-se a isto. Na Coreia do Norte, a maioria dos estrangeiros está alerta para as diferenças, mas não para todas. Aquilo que se quer ver é uma parte grande daquilo que se vê. 

Visitar um país e ter acesso a uma outra cultura é algo incrível e o autor nos provoca a refletir sobre nosso próprio olhar em relação ao outro. O ser humano com sua necessidade de nomear e qualificar tudo, acaba cedendo a diversos estereótipos e preconceitos sobre o que é ser de uma outra localidade e no caso da Coreia do Norte isso se apresenta de forma ainda mais forte, pois sendo um país fechado, o mesmo se abre para as fantasias, teorias e conspirações que o restante do mundo quiser acreditar. O autor salienta sempre como o olhar do visitante é conduzido por aquilo que ele leu em livros antes de chegar. 

Viajar é interpretar. Duas pessoas vão ao mesmo país e, quando regressam, contam histórias diferentes, descrevem os naturais desse país de maneiras diferentes. Uma diz que são simpáticos, a outra diz que são antipáticos. Uma diz que são tímidos, a outra diz que não se calam durante um minuto. Isto é radicalmente verdade em relação à Coreia do Norte.

Peixoto narra de forma contundente as suas percepções sobre os coreanos com quem teve contato e com aqueles que observou de longe durante os passeios guiados. Ele diz muito sobre sua surpresa quanto ao temperamento amistoso do povo norte coreano, pois realmente, se formos nos deixar levar pelo que ouvimos falar da Coreia, o normal seria chegar com a expectativa de encontrar pessoas sisudas, de feição fechada e sem espaço para qualquer tipo de interação. Em seu primeiro dia na capital, o autor já se deparou com jovens e idosos em uma praça cantando e dançando. 

 Quase no topo da colina Moran, no parque Moranbong, depois da curva ao longo do muro de pedra, estava toda a gente a dançar. De amplo sorriso, gente de todas as idades, vestida com a melhor roupa, a dançar. Muitas mulheres de vestido tradicional, muitos homens com aquele conjunto que Kim Jong-il costumava usar, espécie de fato-de-macaco, calças e casaco com um fecho à frente, muitas crianças também. Todos a dançarem, cada um para seu lado, dessincronizados. 


É interessante que Peixoto fica se lembrando do motivo de sua visita aquele país. Esse exercício faz com que ele duvide o tempo todo dos dois guias que acompanhavam o seu grupo, de muitas das histórias contadas e até da veracidade de alguns locais pelos quais passaram e que nitidamente pareciam cenários para turista ver, pois de fato existe uma imagem que o regime faz de tudo para passar e outra que quer esconder do mundo a todo custo. 

Já sabemos que a Coreia do Norte sofre com diversas sanções internacionais, que enfrentam crises econômicas que levam sua população a passar fome, que existe uma lavagem cerebral que leva o povo a cultuar os lideres como se fossem deuses, que não há espaço para questionar as decisões políticas, que ninguém pode sair do país, que ainda utilizam tecnologias arcaicas, que o governo controla o acesso à informação, explora mão de obra de forma análoga à escravidão e diversas outras questões, regras e proibições que afrontam contra os direitos humanos. Mas não foi essa a história que José Luís foi buscar na Coreia, pois essa já é bastante difundida. Já sabemos que a Coreia do Norte vive uma das mais rígidas ditaduras do mundo. Sendo assim, Peixoto mais uma vez fecha seus ouvidos para os guias para olhar em volta.

Muitas vezes, assisti a trocas de afeto entre adolescentes, adultos, ou crianças abraçadas, de mãos dadas. Esses sinais de carinho eram independentes do sexo, rapazes abraçados a rapazes, de mão dada, raparigas abraçadas a raparigas, rapazes abraçados a raparigas, nenhum problema. Ainda assim, o cuidado dispensado às crianças foi aquele que mais me sensibilizou. Essa ternura, repetida ao longo dos dias, amenizava bastante outros aspectos da paisagem. Não é quantificável, como o Produto Interno Bruto, o número de médicos por mil habitantes, mas acredito que é igualmente uma marca de desenvolvimento civilizacional.

José Luís Peixoto descumpriu a promessa assinada em documento de que não escreveria e nem publicaria nada em relação à Coreia do Norte. Inicialmente nem foi a sua intenção, mas a vivência de adentrar em uma das ditaduras mais severas do mundo não é uma experiência de se jogar fora, ainda mais para a mente de um escritor. O livro se faz ainda mais importante por sua característica de fugir do óbvio, do já conhecido, para fazer reflexões mais humanas e que nos levam a pensar porque as coisas são como são e o mais importante, que é o porque elas chegaram a tal patamar. "A Coreia do Norte é uma ditadura severa, provavelmente a mais severa do mundo, mas não é comunista. A Coreia do Norte é o último reduto de alguma coisa, muito provavelmente também é o primeiro e único reduto dessa mesma coisa, mas não é estalinista." 


Quando o autor nos provoca a olhar para a Coreia do Norte para além dos estereótipos ele colabora para que a gente se lembre que para tudo existe um contexto histórico, que na República Popular Democrática da Coreia existe um povo e isso aumenta ainda mais a nossa esperança de que em breve algo aconteça para que esse país possa experimentar outras formas de viver e de experimentar uma liberdade desconhecida para pelo menos as três últimas gerações do país.