Torto Arado do Itamar Vieira Junior (Editora Todavia, 2019) fez algo que não se vê todo dia no meio literário: nasceu clássico. A obra consegue nos conectar com o que há de melhor na literatura brasileira no que se refere a escrita e seu poder de transportar os leitores para uma experiência que poderá ser apreendida e ressignificada de diversas maneiras. Os teóricos costumam dizer que um dos critérios para se considerar um livro como clássico é sua relevância e nesse quesito "Torto Arado" se encaixa com maestria. Algo notável é que Itamar conseguiu esse feito sem perder de vista a nossa atualidade e o fez ao colocar diante dos nossos olhos a importância que existe na história de cada um, na história daqueles que sempre foram invisibilizados. É um livro que se tornou sucesso de vendas e impressiona por isso, pois trata de uma temática que geralmente não domina as listas de vendas. O Brasil está lendo sobre o Brasil e isso nos dá um sopro de alívio em meio ao caos que vivemos hoje. "Torto Arado" foi vencedor do Prêmio Oceanos em 2020 e já havia sido premiado no Jabuti e no Prêmio Leya de Literatura, em Portugal, onde foi publicado primeiro.


O Brasil sofre as consequências por ter vivido durante 300 anos em processo de escravidão. Romper com o que foi construído durante três séculos não é algo fácil e ainda existem muitas pessoas, organizações, governos e diversas instâncias que apostam nas desigualdades que se entranharam na sociedade brasileira e seguem violentando e dizimando existências, principalmente da população negra através do racismo. Em "Torto Arado", podemos vislumbrar um recorte muito sincero sobre essa sociedade pós "abolição" através de vozes importantes para essa narrativa, as famílias negras descendentes de escravizados, que por não terem para onde ir, precisaram continuar trabalhando sem remuneração nas grandes fazendas. A dinâmica de trabalho de domingo a domingo para garantir um pedaço de terra para plantar nas poucas horas vagas e ainda assim ter que dividir a própria produção com o dono da fazenda, a construção de suas casas, que obrigatoriamente deviam ser de barro para não se criar uma ideia ou impressão de morada fixa, de dono da própria morada eram uma das regras.  

"Podia construir casa de barro, nada de alvenaria, nada que demarcasse o tempo de presença das famílias na terra."

A história que Itamar nos conta se passa quase que uma geração após a abolição e é angustiante perceber que basta uma pesquisa rápida para encontrarmos, nos dias de hoje, pessoas na mesma situação no chamado Brasil profundo e até mesmo em grandes centros, como a história de Madalena Gordiano, que viveu por 38 anos em Patos de Minas como empregada sem registro ou salário mínimo garantido. Desde os 8 anos viveu e trabalhou para a família Milagres Rigueira sem qualquer direito. O trabalho análogo à escravidão ainda é uma realidade em nosso país e vez ou outra nos deparamos com reportagens que denunciam essas condições. A narrativa de "Torto Arado" encaixa bem no contexto do início de 1900, como nos anos 30, como agora em 2021. 


Meu pai havido nascido quase trinta anos após declararem os negros escravos livres, mas ainda cativo dos descendentes dos senhores de seus avós. Minha avó, Donana, tinha dado à luz o filho José Alcino em meio a uma plantação de cana na Fazenda Caxangá. Ele nasceu no meio de um charco, porque não haviam permitido que sua mãe deixasse de trabalhar naquele dia.




Tendo como pano de fundo a história da família de Belonísia e Bibiana, duas irmãs que tem as vidas entrelaçadas pelas realidades, dores, amores e perdas que embrenhamos pela comunidade de Água Negra no sertão baiano. Belonísia e Bibiana são duas irmãs unidas, vivem uma rotina de lida com a casa e o trabalho com a plantação junto a seus pais e demais irmãos, já que tiveram que aprender muito cedo sobre a terra. O romance é narrado em primeira pessoa e alterna suas vozes. A primeira parte se chama "Fio de Corte" e é narrada por Bibiana. A segunda parte se chama "Torto Arado" e a narração é da Belonísia. Já a terceira parte chamada "Rio de Sangue" é contada por Santa Rita Pescadeira, uma das entidades que aparecem na história. É incrível a capacidade de Itamar Vieira Júnio de convocar três vozes distintas para contar uma história muito bem escrita e que completa muito bem seu ciclo narrativo. 

Quando retirei a faca da mala de roupas, embrulhada em um pedaço de tecido antigo e encardido, com nódoas escuras e um nó no meio, tinha pouco mais de sete anos. Minha irmã, Belonísia, que estava comigo, era mais nova um ano. Pouco antes daquele evento estávamos no terreiro da casa antiga, brincando com bonecas feitas de espigas de milho colhidas na semana anterior. Aproveitávamos as palhas que já amarelavam para vestir feito roupas nos sabugos. Falávamos que as bonecas eram nossas filhas, filhas de Bibiana e Belonísia. Ao percebermos nossa avó se afastar da casa pela lateral do terreiro, nos olhamos em sinal de que o terreno estava livre, para em seguida dizer que era a hora de descobrir o que Donana escondia na mala de couro, em meio às roupas surradas com cheiro de gordura rançosa. 


O que se desenrola a partir da curiosidade das irmãs e o que se encontra na mala é algo que irá modificar o rumo das vidas de Bibiana e Belonísia pelo resto de suas vidas, como também de toda a família. Por um lado, as irmãs se tornam ainda mais unidas por conta das circunstâncias de um acidente, ao mesmo tempo que alguns acontecimentos agirão como uma força reversa ao imã, tentando levar as irmãs para mundos completamente diferentes. Através do ponto de vista de cada uma delas, conhecemos a história dessa família que luta contra a chuva, contra a seca, contra a fome, contra o despejo. Que precisa encontrar estratégias diante da exploração dos donos de terra para garantir sua casa de barro. 

Se o contexto em que vivem é de muita exploração do trabalho, luta pela dignidade e pelo que comer, na família as irmãs irão encontrar um pouco mais de apoio, e diria que doses de ânimo para enfrentar uma vida difícil. Apesar da realidade dura, as meninas possuem pais que são muito dedicados ao bem estar de todos os filhos e que não poupam sacrifícios para amenizar as dores e as dificuldades. O pai de Bibiana e Belonísia, conhecido como Zeca Chapéu Grande é um personagem fascinante que se dedica também a ensinar seus valores e aprendizados sobre a vida e a terra. As problemáticas envolvendo opressão e patriarcado estão presentes, é claro, mas em "Torto Arado" temos também a manifestação da força da mulher do campo com toda sua potência. 


Poder estar ao lado do meu pai era melhor do que estar na companhia de dona Lourdes, com seu perfume enjoativo e suas histórias mentirosas sobre a terra. Ela não sabia por que estávamos ali, nem de onde vieram nossos pais, nem o que fazíamos, se em suas frases e textos só havia histórias de soldado, professor, médico e juiz.

 

Zeca se dedica como ninguém ao trabalho rural e também exerce uma função importante naquela comunidade, a de curador espiritual. Ele conversa com entidades, divindades, os chamados encantados. É uma liderança em Água Negra e todos acreditam que ele tem o poder de curar os males do corpo e da alma. 


De loucura meu pai entendia, assim diziam, porque ele mesmo já havia caído louco num período remoto de sua vida. Os curadores serviam para restituir a saúde do corpo e do espírito dos doentes, era o que sabíamos desde de o nascimento. O que mais chegava a nossa porta eram as moléstias do espírito dividido, gente esquecida de suas histórias, memórias, apartada do próprio eu, sem se distinguir de uma fera perdida na mata. 

Zeca Chapéu Grande se apresenta para a sua família como um contraponto ao que elas assistem a sua volta. Enquanto no entorno veem surras, bebedeira, exploração, subserviência. Na casa de Zeca e Salu, sua esposa, acontece afeto, cuidado, diálogo, ensinamento e união, que nem sempre conseguem protegê-los da realidade, mas que ainda assim não abrem mão. As personalidades de Bibiana e Belonísia são frutos dessa criação. Sempre que possível fazem uso dos ensinamento e da honra que herdaram de seus pais. 

Com Zeca Chapéu Grande me embrenhava pela mata nos caminhos de ida e volta, e aprendia sobre as ervas e raízes. Aprendia sobre as nuvens, quando haveria ou não chuva, sobre as mudanças secretas que o céu ou a terra viviam. Aprendia que tudo estava em movimento - bem diferente das coisas sem vida que a professora mostrava em suas aulas. Meu pai olhava para mim e dizia: "O vento não sopra, ele é a própria viração", e tudo aquilo fazia sentido. "Se o ar não se movimenta, não tem vento, se a gente não se movimenta, não tem vida", ele tentava me ensinar. 


Cresci em meio às crenças de meu pai, de minha vó, e mais recentemente de minha mãe. Os objetos, os xaropes de raízes, as rezas, as brincadeiras, os encantados que domavam seus corpos, tudo era parte da paisagem do mundo em que crescíamos. 

 As questões religiosas se entrelaçam com a vida das personagens de uma forma muito bonita. Como vivem e trabalham na terra, muitas vezes a importância que dão ao território de onde tiram seu sustento, alcança uma dimensão mística, mágica e quase sobrenatural. A partir disso Itamar trabalha muito bem com o sentimento de pertencimento do povo com a terra, com a casa, com a comunidade. Muitas vezes sentimos que cada personagem se sente como que nascido daquela própria terra, mesmo aqueles que vieram de outras localidades. É também essa temática do pertencimento, da identidade, da memória que levanta uma das principais questões do livro: o não direito à terra. 


Além de explorar as dores e injustiças do trabalho análogo à escravidão, Itamar também constrói em sua narrativa o processo de despertar de uma comunidade oprimida em relação a seus direitos. Conforme os anos vão se passando e nossas protagonistas vão se tornando mulheres adultas e marcadas por muitos acontecimentos, vamos testemunhando também uma tomada de consciência sobre seus direitos. Direitos que possuem em uma terra que ajudaram a construir, onde nasceram, foram criadas e que nunca tiveram a permissão nem mesmo de construir uma casa que não fosse de barro. 


Lendo "Torto Arado" temos também a angústia como companhia ao percebermos que em alguns aspectos é como se o tempo não tivesse passado, como se estivéssemos presos no passado Ainda que muitos não queiram enxergar, o racismo ainda dita regras em nosso país e clamar por direitos humanos, por igualdade social e racial é mais que um dever, é um posicionamento político. "Torto Arado" é uma obra prima, é uma ficção concebida por um grande pesquisador que conhece bem sobre o que escreve, portanto é também um livro político. Poético e político da melhor maneira que isso possa ser.