O som do rugido da onça da Micheliny Verunschk (Companhia das Letras, 2021) é um romance que transpõe algumas barreiras para construir sua narrativa. A autora parte de um fato histórico, que é a viagem exploratória do zoólogo Johann Baptist von Spix e do botânico Carl Friedrich Martius pelo Brasil no século XIX. No retorno a Munique sequestraram cerca de oito crianças indígenas e a  menina Iñe-e e o adolescente Juri foram os únicos que sobreviveram às atribulações da viagem e foram rebatizados de Johannes e Isabella. Foram roubados de sua terra, quase que como um adereço que se carrega de presente de uma viagem turística, dois exemplares da fauna brasileira. Partindo dessa ideia, Verunschk teceu um romance que apresenta um relato não hegemônico de uma história onde quase sempre se conhece apenas um lado. A escritora se vale da literatura para imaginar os sentimentos, reflexões, medos, saudades, curiosidades, sofrimentos que os jovens indígenas viveram no curto período que estiveram em terra estranha. 


Uma das barreiras que o livro transpõe é a da própria escrita. A história de "O som do rugido da onça" não é contada de forma linear. O livro transita entre o século XIX e a atualidade num trocar de páginas. Casa depoimentos que demostram que "a história é mestra do futuro, mas também do presente." Sendo assim, Micheliny utiliza de seus conhecimentos como pesquisadora e historiadora para tratar de temas como espaço, tempo e seu efeito em um contexto histórico. É uma viagem pela história de um tempo que reverbera ainda hoje, que faz parte da nossa formação enquanto povo e que de maneiras diferentes continua a ser recorrente.  


Outra barreira transposta é que não conseguimos muito bem definir um gênero literário para o livro. A obra utiliza de elementos do romance, do romance histórico, da autobiografia e da memória, assim como do ensaio para contextualizar fatos históricos com prosa ficcional. É um livro hibrido. Fica muito nítido para os leitores quando o tempo narrativo muda, assim como a voz narrativa que vai da Amazônia para Munique, de Spix para Martius, de Iñe-e a Juri e chega até a um rio que mostra ter muito o que dizer. 

O rio Isar trazia notícias de tempos, lugares, pessoas, coisas que Iñe-e nunca conhecera. E dava notícia de animais impressionantes, de guerreiros e inimigos que há muito tinham morrido, de cidades desconhecidas e de homens santos e dos milagres que contavam deles. Isar falava incessante, como é da natureza das águas.

Temos também uma barreira derrubada que vai de encontro a um posicionamento necessário da autora, que é o de explorar vozes existentes para além do registro hegemônico. Muito já lemos sobre o espanto do explorador, de quem vem de fora com o modo de viver de uma comunidade, um grupo desconhecido a ser dominado e pouco lemos sobre o processo de estranhamento pela ótica de um grupo que se depara com a excentricidade do dominador. Imagina se pensarmos na voz de duas crianças indígenas? Assim, temos um estranhamento que se dá até pela linguagem. 

E embora ela, essa língua, seja áspera, perfurante, há alguma liberdade sobre como pode ser utilizada, porque houve muito custo em aprendê-la. Assim, se há uma recusa em usar a palavra taxidermia e se escolhe usar a palavra desencantamento, há teimosia nisso.
O livro é muito rico por explorar o olhar dessas crianças indígenas, principalmente o da menina e leva os leitores a se colocar no lugar do outro. É como se Micheliny Verunschk fizesse justiça ao devolver a Iñe-e a oportunidade de contar sua própria história. É um relato sobre identidade, memória, pertencimento e cultura que consegue nos sensibilizar. Iñe-e carrega consigo uma história, uma voz que trabalha com a simbologia da onça, que também é uma simbologia que demarca a história geograficamente, temporalmente e num corpo de mulher indígena.