Talvez seja uma impressão minha, não posso afirmar que essa percepção seja real, mas às vezes chego a pensar que as pessoas não escrevem mais dedicatórias em livros. Recebo muitos livros de presente, mas eles raramente chegam com uma dedicatória e isso fere minhas expectativas. Desconfio que poucas pessoas ainda o façam e sempre achei que aquele pequeno texto de “te dedico” que geralmente era escrito nas primeiras páginas dos livros, quando dados de presente, carregam consigo uma poesia muito especial.
A gente pode até presentear alguém por um motivo e uma ocasião qualquer, sem que algo especial tenha acontecido e até mesmo para abrir espaço na estante ou se livrar de uma obra que não gostava tanto, mas uma dedicatória nunca escrevemos impunemente. Uma dedicatória escrita à mão em um livro é um recado, uma expressão de afeto que deixará sempre registrada sua procedência. Fora que escrever em um livro, objeto alçado à sacralidade pela sociedade e até por quem acredita não gostar de ler é uma ousadia que só é permitida nessas ocasiões, e inclusive, é vista como um ato de carinho e amor. Riscar, mesmo que a lápis, uma passagem marcante de um livro para muitos é quase um crime, mas é difícil encontrar alguém que saia ofendido após receber um livro com uma dedicatória com data e tudo. Uma dedicatória contextualiza um livro no tempo das emoções. Quem nunca foi bombardeado por lembranças ao abrir um livro antigo e se deparar com uma dedicatória e uma assinatura de alguém que talvez nem faça mais parte de sua vida?
Tenho também algumas teorias sobre esse possível desaparecimento das dedicatórias. Uma delas é o enfraquecimento de tudo que é mais analógico em detrimento do digital. São tantas as ferramentas, equipamentos e tecnologias vinculados à escrita hoje, que o ato de escrever, que antes dependia da relação íntima entre tinta e papel, hoje foi facilitada, não podemos negar, pelos cliques e projetadas nas telas de inúmeros tamanhos, cores e modelos. Algumas pessoas ainda carregam uma caneta, um lápis ou uma lapiseira na bolsa ou mochila, mas praticamente todas carregam um celular.
Escrever à mão está se tornando uma coisa rara, tanto que não é difícil encontrar alguém relatando a dificuldade de escrever quando diante de uma situação de necessidade e como ficamos surpresos quando vemos algo escrito por alguém e já soltamos: “nossa, essa é sua letra”, ou “que bonita a sua letra”, e até mesmo “mas que garrancho você tem”. Não conhecemos mais as letras das pessoas e mais grave do que isso é o tanto que perdemos, cognitivamente falando, quando abandonamos o ato de escrever. Desenhar palavras é ato rebuscado. Mas isso daria um outro texto.
A questão é que as dedicatórias, além de serem uma expressão de afeto, e das mais especiais para quem é apaixonado por livros, também podem ser mais uma porta de entrada para uma experiência de leitura marcante. Acredito que todo livro por si só já é uma dedicatória, pois todo escritor e escritora que publica sua obra deseja ser lido. Assim como uma dedicatória não é escrita impunemente um livro também não será. Um autor possui uma intenção que pode ser íntima ou coletiva, e independente de ser uma opção ou outra estará interligada a uma pretensão que nasce íntima e que se torna de todos, que se torna universal quando ganha o mundo. Um livro publicado é dedicado ao mundo.
Vocês já pararam para pensar por que gostamos tanto de receber autógrafo de nossos escritores e escritoras preferidos? Vai além de ter seu livro tocado e escrito por alguém admirado, é também como se aquela escrita analógica, a mão, de tinta sobre papel personaliza-se um objeto produzido em série. É como se aquele livro passasse a ser dedicado exclusivamente a você e melhor ainda, por quem o escreveu.
Em minha memória afetiva de leitor tenho duas histórias que marcaram profundamente sobre dedicatórias em livros e que elevaram a outra potência minha experiência de leitura com Guimarães Rosa e Machado de Assis. A primeira delas aconteceu ainda na adolescência. Em 2002 recebi um presente muito especial de uma professora de Português e Literatura chamada Patrícia, que posso dizer que foi a principal culpada por eu ter me encontrado enquanto leitor. Nos tempos em que vivemos é muito bom poder carregar essa culpa. O livro era (é) do João Guimarães Rosa, o "Sagarana''. E ele não veio sozinho. Veio com o sertão, os vaqueiros, os jagunços, a força da oralidade e uma assinatura, escrita a mão. Orofino é o nome do possível primeiro dono de uma edição das antigas de Sagarana e a carta da professora, que ganhei junto com o livro termina assim:
“Não se esqueça de marcar a obra com o seu nome. Assim, faremos nós três (eu, você e o Orofino) parte de uma mesma saga.”
Foi a partir daí que passei a ver as dedicatórias e as assinaturas em livros com outros olhos. Elas passaram a ter um ar de magia para mim, como uma chave para entrar em uma história, como um pedido de permissão para fazer parte daquele universo e acessar os sentimentos, as emoções, as dores e as descobertas que a leitura proporciona. Pelo que está registrado no livro, Orofino teve acesso a essa obra ainda muito cedo, e várias versões dessa história já habitaram a minha mente e a mais romântica de todas foi a de que talvez esse tenha sido um livro de formação para a trajetória leitora do moço. Depois dessas palavras da minha professora, sempre fico empolgado quando um livro com dedicatória chega até minhas mãos, e principalmente quando é um livro que veio sabe-se lá de onde com uma assinatura de um completo desconhecido. Eu começo a leitura e embarco em uma narrativa antes mesmo do início da leitura do livro. É uma narrativa dentro da narrativa.
O segundo acontecimento veio para transformar a minha relação com as dedicatórias em quase fetiche, em uma mania literária que quase foge do livro em questão. Tive acesso a um exemplar de 1940 de ninguém menos que Machado de Assis com seu enigmático Dom Casmurro. O livro seria descartado por uma biblioteca por ser uma edição muito velha e em péssimo estado de conservação. Como tenho um certo apreço por livros antigos, peguei para mim e para deixar tudo mais poético o livro possui uma dedicatória de uma tal Daisy para um certo Mário, com ares de paquera, ou quem sabe até namoro consolidado. Um flerte sutil, um flerte de outubro de 1944.
“Mário: Numa capa de livro, como no nosso rosto, nem sempre podemos deixar transparecer o que nos vai no íntimo do coração. Mas V. saberá lêr o que não está aqui e saberá sentir tudo quanto desejo para V., para nós dois. Carinhosamente, Daisy. 7 de outubro, 1944.”
Após a leitura dessa dedicatória, tão enigmática quanto a própria obra de Machado, Mário e Daysy passaram a ser personagens do meu exemplar antes mesmo que Bentinho e Capitu. Antes que eu pudesse me debruçar a questionar e analisar a fidelidade de Capitu e a paranoia de Bentinho, eu já estava criando minhas próprias narrativas sobre aquele flerte sutil de 1944, sobre o que Daisy tanto queria que Mário percebesse e se o que ela desejava para os dois se concretizou. É mágico pensar que talvez, Daisy e Mário tenham iniciado ali uma nova família que hoje está em uma outra geração e o livro está aqui comigo, contextualizando o livro no tempo concreto e subjetivo das emoções 76 anos depois de Daisy ter deixado uma dica sobre o que se passava no íntimo de seu coração. Uma dedicatória pode contar um capítulo da história de alguém. Machado de Assis me presenteou com especulações. Daisy e Mário também. Dom Casmurro tornou-se um livro de mistério em uma nova versão única e rara que agora é só minha.
Texto foi publicado originalmente na edição de dezembro de 2020 da Revista Terrível em uma coluna que assino chamada "escrelivrarei". A revista é um projeto idealizado pelo bibliotecário, escritor e desenhista Igor Tavares. Conheça: https://revistaterrivel.wordpress.com/
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