Alma na casa sozinha de Felipe Gomes (Editora Patuá, 2020) é um livro de poesias que trás para os leitores um painel de vidro em pedaços. Esse painel conta uma grande história e é como se nós estivéssemos ajoelhados, tentando juntar os pedaços como num quebra cabeças. Vamos montando e cada pedaço que vai se encaixando nos mostra um fragmento de um acontecimento, de um pensamento, de uma confissão que joga nossas próprias vivências sob as imagens que Felipe nos sugere. E a gente se reconhece. "Alma na casa sozinha" trabalha com o simples e com o complexo com a mesma dedicação e se em um dos poemas o autor nos diz "deus, como não ser intenso/numa cidade dessas" eu usaria o mesmo fragmento para avaliar esse livro: "deus, como não ser intenso/com um livro desses."


A poesia de Felipe Gomes nos leva a refletir sobre qual seria a imagem desse grande painel de vidro, sobre qual é o espelho do poeta. O autor olha pra si por esse espelho, mas é nos estilhaços de onde ele mais consegue extrair as temáticas que aparecem na obra. Essa característica é algo empolgante no livro, pois desafia a ideia de busca por uma totalidade para olhar cada caco, cada estilhaço, cada fragmento. E não seria cada caco, cada estilhaço e cada fragmento parte de um todo?


Natureza

esses corpos-vitrine

que assaltam pelas ruas do Rio

me estilhaçam

a corrente do sopro

cotidiano


pré-aqueço

chego a 1500

fundo

e endureço


vontade de cheirar o pescoço

daquele moço que pediu licença

e passou


 O fato é que não importa a imagem que esse vitral sustentava antes de se quebrar pelas mãos do poeta. O que importa é o processo de coleta de cada estilhaço através das palavras de Felipe Gomes. "Alma na casa sozinha" explora o meio urbano, as memórias, a sexualidade, os encontros, a observação das pessoas, o cotidiano das esquinas, os perfumes, os desejos com uma escrita fluida e envolvente. Os poemas envolvendo as percepções do corpo chamaram minha atenção e revelam algumas intimidades que são muito próximas a nós e que também ajuda a ilustrar o corpo como espelho, o corpo como casa. 


baixo

no fundo,

gosto

do que me faz mau


aquilo que machuca

endurece

meu pau

 

rotina


limpo minha jaula

faço uma bainha

me toco, imaginando conhecidos


com braços que não forçam as barras

com mãos que não arriscam bordados

com dedos que não me apontam caminhos


A representação do espelho em "Alma na casa sozinha" é algo que casa perfeitamente com a aleatoriedade muito bem pensada que existe até na ordem em que os textos aparecem. Os poemas refletem entre si e curiosamente tiram ordem de onde parece não existir. Todas as temáticas parecem ser confrontadas diante de um grande espelho que mostra o tempo todo que tudo está interligado e que somos formados por um jogo de representações e de identidades que se entrelaçam, se chocam e muitas vezes se quebram para formar uma nova narrativa.