Segredos de Domenico Starnone (Editora Todavia, 2020) é um romance italiano de uma beleza arrebatadora. Acompanhamos as histórias e reflexões amorosas, familiares e intelectuais de Pietro a partir dos anos 70. Ele é um professor que trabalha na periferia de Roma e possui opiniões polêmicas sobre o sistema educacional italiano. O educador está sempre fazendo provocações sobre a dificuldade da escola lidar com as diferenças, com a desigualdade social, com a integração das mudanças sociais se enquadrando em um formato que pretende tratar todos como iguais, mas não o consegue, pelo fato que é reconhecendo as especificidades de cada pessoa que a educação pode ser verdadeiramente formadora.
Se o senhor tem muitos privilégios naturais e sociais, enquanto eu não tenho nenhum, como a escola faz para educar da melhor forma tanto o senhor quanto a mim se nos trata como se fôssemos iguais?
Para além das discussões sobre a educação italiana, que olhando para a nossa parece existir uma certa universalização de alguns problemas, a história irá girar também em torno de dois segredos que a gente fica curioso para saber quais são pelas circunstâncias que eles surgem. Domenico Starnone fez algo interessante que foi dividir o livro em três partes, entregando a narração a três personagens diferentes. Quando conhecemos três perspectivas os fatos ganham um sabor ainda melhor e nos mostra que nenhum narrador é confiável, nem mesmo quando se trata da própria história. Somos seres narrativos, mas utilizamos dos silêncios e dos segredos sempre que convém.
Quando começamos a história sabemos que o professor Pietro tem um relacionamento conturbado com uma jovem chamada Teresa. Pietro fora professor de Teresa na mesma escola que ainda leciona, então a forma como os amantes convivem e conversam muitas vezes se confundem. Em alguns momentos, vemos nitidamente dois amantes numa relação tórrida para depois perceber algumas nuances de uma relação que ainda é de aprendiz e mestre. Teresa foi uma das alunas "desinteressadas" de Pietro que fora conquistada com o tempo por um professor que acredita em uma pedagogia desconectada da repressão e da repreensão. "Sempre senti a chamada à ordem como um brutal empurrão nas costas, de modo que não submeto ninguém a empurrões."
Como educador, Pietro se coloca numa posição responsável, mas também muito difícil de tentar todos os instrumentos e estratégias para que o ensino funcione da maneira que acredita e projeta. Teresa parece repetir o papel da aluna no relacionamento amoroso, uma vez que não perde a oportunidade de provocar reações em Pietro e o consegue por também ter uma mente brilhante. É logo após uma das constantes discussões entre os dois que a ideia de um pacto surge.
Teresa insinuou cheia de dedos uma proposta e disse: vamos combinar que eu te conto um segredo horrível meu, que nem a mim mesma nunca tentei dizer, e você me conta um seu equivalente, uma coisa que, se fosse descoberta, te destruiria para sempre.
Após cada um contar seu grande segredo, prometem nunca revelar a ninguém e nunca se separarem. Acontece que apenas alguns dias depois o relacionamento chega ao fim. O término acontece de forma amigável, mas o que inicialmente surge como uma ideia de conexão e confiança, se torna motivo de medo, principalmente para o professor. Teresa possui o maior segredo de Pietro e Pietro o maior segredo de Teresa, ambos com poder de destruir suas reputações. Com o tempo cada um segue seu rumo na vida, mas ocasionalmente a vida os reconecta e não sabemos se o que os atrai é o segredo ou a marca deixada por um amor intenso.
Percebi que o espaço desenhado por ela na quitinete em que tínhamos morado, ou ao lado de mim na rua, no cinema, em qualquer lugar, estava vazio, cinza. Que complicado, um amigo me disse certa vez, se apaixonar por uma mulher que em todos os aspectos é mais viva que nós.
Não diria que o livro é sobre Educação, mas é sobre isso também. Como cada leitor se conecta com os temas que vão de encontro às suas próprias vivências, em "Segredos" é possível acessar uma infinidade de questões e sem dúvida os diálogos sobre educação e escola foram os que mais me moveram na obra. O tema não aparece como um discurso didático, mas como uma reflexão sobre a escola e sua dificuldade em largar ou remodelar processos tradicionais. A educação aparece exaltada como profissão na figura de professores, pensadores e intelectuais e se insere na história como o motor que move a vida das personagens.
Inicialmente, Pietro é um homem que apesar de amar sua profissão não conseguia se convencer de que poderia escrever sobre as teorias educacionais que acreditava. Ele olhava para sua produção e enxergava "frases minhas tão eficazes que tive a impressão de nunca as ter escrito." Com o término do relacionamento ele acaba se debruçando sobre a escrita de um artigo que acaba tomando proporções que ele não imaginava, tanto positivas como negativas. Pietro desconstrói a ideia que temos de escola para poder reconstruir. Na narrativa, Domenico transforma a escola em um lugar passível a ser visitado. Quando olhamos para a escola como um lugar conseguimos olhar para as teias de aranha, para as rachaduras nas paredes, para as goteiras, para a pintura que precisa ser trocada.
- Então você é contra os primeiros da classe, os melhores, os poucos que estudam a sério?
-Não.
- Foi o que afirmou agora mesmo.
- Só estava tentando dizer que quanto mais os alunos repetem nossas aulas palavra por palavra, mais tendemos a considerá-los bons.
- E não são?
- Certamente são. Mas há o risco de sermos ofuscados por aqueles que se assemelham a nós, de não conseguirmos reconhecer inteligências diferentes das nossas.
Assim como não abre mão das dúvidas sobre a atuação da escola e eficácia do sistema empregado, Pietro também abre brechas para questionar sua própria atuação. Ele trabalha sobre a máxima de não permitir que ele mesmo faça aos seus alunos o mal que alguns professores fizeram a ele. Essa parte da obra me fez lembrar de uma experiência pessoal na universidade, onde estávamos fazendo avaliação da disciplina de um professor inspirador e quando questionado sobre a qualidade de suas aulas ele disse que procurava preparar a aula que ele gostaria de ter se estivesse ali, naquele momento, na posição de aluno. Foi algo que nunca mais esqueci.
Nós, professores, nos tornamos prisioneiros da escola aos seis anos e nunca mais fomos libertados. Não permitam que o poder os instrua, aprendam vocês mesmos a instruí-lo. Uma boa instrução cria comunidade, não compadrio. Não se trata de instruir bem os poucos afortunados, mas de instruir muito bem os tantos desafortunados. Aprende-se mais do estranho que da própria corriola.
Comecei a escrever um novo livro em que sugeria a hipótese de que a escola nunca funcionara de fato como deveria funcionar; que sua maior hipocrisia era distribuir iguais porções de saber a desiguais fingindo que eram iguais; que falar em ensino de qualidade para todos significa na verdade virar do avesso não só a sala de aula, mas também a família, a sociedade, as hierarquias do saber, a religião, a propriedade dos meios de produção, tudo; que o fracasso agora evidente da instrução de massa causaria mais danos irreversíveis que uma guerra nuclear. Em conclusão, a escola deveria ser repensada de modo a fornecer a todos, absolutamente a todos, em especial aos professores, os instrumentos para sonhar a própria excepcionalidade e, no momento oportuno, despertar e realizá-la.
"Segredos" inicia com um texto que é quase impossível não embarcar na leitura e tem um dos finais mais instigantes dos livros mais recentes que li. É uma leitura que fica habitando a gente mesmo depois da última página e que nos leva a reflexões diversas sobre educação, escola, reputação, formação, silêncios, segredos e a descoberta de quem realmente somos. As angústias de Pietro se tornam nossas angústias, pois assim como ele, de uma forma ou de outra, estamos nessa busca incessante de saber quem somos, o que queremos e de que forma podemos dar vazão a melhor versão de nós mesmos.
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