O bom crioulo, livro de Adolfo Caminha (Editora Todavia, 2019) publicado originalmente em 1895 impressiona e muito pela sua coragem. Caminha ousou escrever uma história que conta abertamente sobre uma relação homoafetiva entre dois marinheiros em pleno século XIX. Já podemos imaginar a polêmica e revolta que esse livro causara na época de seu lançamento, pois além de narrar uma história de amor obsessivo entre dois homens, soma-se a isso o fato de que era também uma relação inter-racial. Amaro, o "bom crioulo" é um homem negro que após fugir das "fazendas" onde trabalhava ainda em regime de escravidão, consegue posto em um navio como marinheiro. Ele se apaixona por Aleixo, rapaz recém chegado ao navio e que assume posto de grumete. Aleixo é ainda um adolescente que chama atenção por sua beleza. O narrador o descreve como um "belo marinheirito de olhos azuis, muito querido por todos e de quem diziam-se cousas". A partir de um episódio em que Amaro defende Aleixo e recebe um castigo de chibatadas pela ousadia, começa a nascer uma relação entre os dois, onde o processo de conquista se dá de uma forma nunca antes vista na literatura brasileira em se tratando de uma relação homossexual.
Adolfo Caminha produziu uma obra de muita importância para a nossa literatura e sua relevância pode ser medida, ironicamente, pela sua péssima recepção. "O bom crioulo" é um livro onde os protagonistas são homens gays, sendo um deles negro. Se ainda hoje, livros com temática homoafetiva são perseguidos por conservadores e precisamos ainda levantar a bandeira do "leia livros escritos por pessoas negras", imaginem isso em 1895. Hoje, considera-se que essa foi a primeira publicação a ter um homem negro e gay como protagonista e realmente duvido que outra obra tenha conseguido fazer isso antes de forma tão explícita. "O bom crioulo" caminhou muito para ser reconhecido como uma obra revolucionária e um dos grandes exemplos do naturalismo brasileiro. Caminha morreu muito jovem, com apenas 29 anos, e isso acabou fazendo com que o livro caísse no esquecimento. Só foi reeditado nos anos 30 e mais uma vez causou comoção. A Marinha Brasileira reagiu energicamente, pois não queria ver uma história sobre marinheiros gays circulando por aí. Nos anos 50 o livro volta a surgir por conta da atuação de movimentos LGBT e de acadêmicos que reconheceram a potência da obra.
Na introdução desse texto digo que o livro trata "abertamente" de uma relação entre dois homens e esse é um dos principais fatos que merecem ser mencionados. Quando ouvi falar sobre "O bom crioulo" e o vi figurando na lista de romances com temática LGBT logo imaginei, por conta da época que fora escrito, um texto que iria trabalhar apenas com a sugestão dos atos e dos sentimentos. Não é isso que se encontra. Caminha retrata sem pudores todos os desejos que a figura de Aleixo causa em Amaro. Encontramos trechos onde se descreve toda a tensão sexual que acontece entre os dois, como também aquelas que são da ordem do sentimento, do amor romântico - "o negro esquecia todos os seus companheiros, tudo que o cercava para só pensar no grumete, no 'seu bonitinho' e no futuro dessa amizade inexplicável."
É muito interessante a forma como o autor explora a homossexualidade como algo que vem do âmago do indivíduo, como um sentimento arrebatador e inerente a quem se é, algo a frente do tempo e muito antes de iniciarmos discussões mais aprofundadas sobre o fato de que ninguém se torna gay. Adolfo Caminha, em sua forma de narrar, demostra comungar de certa forma da ideia de que a homossexualidade não é uma escolha e sim uma condição.
Os dois trechos acima são exemplos muito representativos para a luta contra a homofobia e iniciam uma discussão sobre a naturalidade das relações entre pessoas do mesmo sexo na literatura. Isso é claro, não livra a obra de passagens problemáticas sobre a representação do homem gay, e principalmente do homem gay e negro. Para entender a relevância dessa obra é preciso estar consciente o tempo todo do período em que o livro foi escrito, das ideias sobre sexo e sexualidade que eram proferidas e que ainda não havíamos inciado a maioria dos estudos e discussões sobre diversas teorias que utilizamos hoje como argumento para entender a homossexualidade no contexto social.
Se por um lado Adolfo Caminha coloca o desejo entre dois homens como algo inerente a algumas pessoas, por outro, em muitos pontos ele entra em contradição ao equiparar a homossexualidade com algo pecaminoso. É como se existissem duas forças contrastantes na escrita de Caminha, sendo uma que luta pela liberdade de pensamento e dos corpos e outra ainda imersa em convenções sociais e marcada a fogo por preceitos cristãos. Um trecho que ilustra bem esse conflito aparece logo após Amaro e Aleixo terem sua primeira relação sexual, ao qual o narrador arremata com: "E consumou-se o delito contra a natureza." e mais a frente em outra parte lemos "não havia jeito, senão ter paciência, uma vez que a "natureza" impunha-lhe esse castigo."
Esse mesmo tipo de conflito se dá quando o autor se refere à negritude de Amaro, o bom crioulo. Apesar de Adolfo Caminha ter sido nitidamente um homem com ideais abolicionistas, e de na maior parte da obra ele construir um personagem complexo, humano, devoto, amoroso e meio que parecer defender muitos de seus atos de violência levando em consideração um histórico de racismo e escravidão, seu texto muitas vezes deixa escapar alguns discursos e representações dotados de estereótipos racistas que acabam por legitimar uma ideia ou sensação de inferioridade na diferenciação entre negros e brancos. No livro, quando o negro Amaro aparece com uma característica que se sobressai aos homens brancos é em legitimação de uma ideia fortemente racista da capacidade dos negros em lidar com dores extremas.
Essa representação do homem preto, quase que imune a dor segue por todo o livro. Na sequência desse episódio das chibatadas o narrador diz que apenas ao alcançar o número de 150 chibatadas que um filete de sangue se torna visível e começa a escorrer pelas costas de Amaro - algo humanamente impossível.
Uma outra característica que reforça estereótipos racistas está na objetificação do corpo negro. Amaro é visto como um homem que "naturalmente" nasceu para fazer sexo da forma mais selvagem possível e isso é representado muitas vezes nos momentos em que o narrador nos mostra a visão dos outros personagens sobre Amaro e seu corpo e nas partes em que os desejos sexuais do próprio Amaro em relação a Aleixo são narrados.
Olhando para a história da escravidão e toda a crueldade que foi realizada em nome dela, percebemos que para que isso fosse possível era necessário um processo de desumanização do povo preto e em muitos trechos vemos essa desumanização ainda presente. Adolfo Caminha usa em demasia características de diversos animais para se referir a Amaro.
Se por um lado "O bom crioulo" colabora e muito para a questão da representação da homossexualidade na literatura brasileira e sua naturalização, por outro, ele faz muito menos em relação à questão do negro e a violência do racismo. É claro que existe na obra uma intenção crítica de retratar uma sociedade racista e muitas das falas e atitudes das personagens, aparecem com esse intuito, mas existem também muitos elementos que nos levam a crer que algumas ideias expostas partiram da própria visão de mundo de Caminha por conta do contexto em que vivia. É um exemplo muito didático do racismo que pode vir sutil como uma brisa e pesado como uma porrada no rosto.
Todas essas problemáticas que levantei não querem dizer que eu não tenha gostado do livro, muito pelo contrário. "O bom crioulo" é de fato uma obra prima e mais um exemplo do porque um clássico se torna um clássico. Para além das questões sobre a homossexualidade e do preconceito racial o leitor também poderá navegar em uma obra que retrata de forma muito íntima o cotidiano dos marinheiros e a forma como estavam sujeitos a maravilhas, mas também a uma espécie velada de escravidão. O trecho abaixo demonstra bem o clima de violência que existia entre os marinheiros e Adolfo Caminha, sem perceber já ilustrou um dos motivos que alguns anos a frente iria culminar na revolta da chibata.
É um retrato interessante sobre o Rio de Janeiro em uma época de convulsão social e de acontecimentos importantes para constituição da sociedade que vivemos hoje, assim como consegue ser um tratado sobre liberdade. Utilizando da figura de Amaro, Adolfo Caminha tece passagens muito bonitas sobre a busca desenfreada por liberdade, uma vez que Amaro não buscava só sua liberdade afetiva e sexual, como também o simples fato de poder ir e vir. A ideia do marinheiro que navega é um prato cheio para falar de liberdade e desse personagem fascinante que deixava a grandeza do mar tomá-lo de uma coragem espartana.
Adolfo Caminha produziu uma obra de muita importância para a nossa literatura e sua relevância pode ser medida, ironicamente, pela sua péssima recepção. "O bom crioulo" é um livro onde os protagonistas são homens gays, sendo um deles negro. Se ainda hoje, livros com temática homoafetiva são perseguidos por conservadores e precisamos ainda levantar a bandeira do "leia livros escritos por pessoas negras", imaginem isso em 1895. Hoje, considera-se que essa foi a primeira publicação a ter um homem negro e gay como protagonista e realmente duvido que outra obra tenha conseguido fazer isso antes de forma tão explícita. "O bom crioulo" caminhou muito para ser reconhecido como uma obra revolucionária e um dos grandes exemplos do naturalismo brasileiro. Caminha morreu muito jovem, com apenas 29 anos, e isso acabou fazendo com que o livro caísse no esquecimento. Só foi reeditado nos anos 30 e mais uma vez causou comoção. A Marinha Brasileira reagiu energicamente, pois não queria ver uma história sobre marinheiros gays circulando por aí. Nos anos 50 o livro volta a surgir por conta da atuação de movimentos LGBT e de acadêmicos que reconheceram a potência da obra.
Na introdução desse texto digo que o livro trata "abertamente" de uma relação entre dois homens e esse é um dos principais fatos que merecem ser mencionados. Quando ouvi falar sobre "O bom crioulo" e o vi figurando na lista de romances com temática LGBT logo imaginei, por conta da época que fora escrito, um texto que iria trabalhar apenas com a sugestão dos atos e dos sentimentos. Não é isso que se encontra. Caminha retrata sem pudores todos os desejos que a figura de Aleixo causa em Amaro. Encontramos trechos onde se descreve toda a tensão sexual que acontece entre os dois, como também aquelas que são da ordem do sentimento, do amor romântico - "o negro esquecia todos os seus companheiros, tudo que o cercava para só pensar no grumete, no 'seu bonitinho' e no futuro dessa amizade inexplicável."
É muito interessante a forma como o autor explora a homossexualidade como algo que vem do âmago do indivíduo, como um sentimento arrebatador e inerente a quem se é, algo a frente do tempo e muito antes de iniciarmos discussões mais aprofundadas sobre o fato de que ninguém se torna gay. Adolfo Caminha, em sua forma de narrar, demostra comungar de certa forma da ideia de que a homossexualidade não é uma escolha e sim uma condição.
Sua memória registrava dois fatos apenas contra a pureza quase virginal de seus costumes, isso mesmo por uma eventualidade milagrosa: aos vinte anos, e sem o pensar, fora obrigado a dormir com uma rapariga em Angra dos Reis, perto das cachoeiras, por sinal dera péssima cópia de si mesmo como homem; e, mais tarde, completamente embriagado, batera em casa de uma francesa no largo do Rocio, donde saíra envergonhadíssimo, jurando nunca mais se importar com "essas cousas"...
E agora, como é que não tinha forças para resistir aos impulsos do sangue? Como é que se compreendia o amor, o desejo de posse animal entre duas pessoas do mesmo sexo, entre dois homens?
Os dois trechos acima são exemplos muito representativos para a luta contra a homofobia e iniciam uma discussão sobre a naturalidade das relações entre pessoas do mesmo sexo na literatura. Isso é claro, não livra a obra de passagens problemáticas sobre a representação do homem gay, e principalmente do homem gay e negro. Para entender a relevância dessa obra é preciso estar consciente o tempo todo do período em que o livro foi escrito, das ideias sobre sexo e sexualidade que eram proferidas e que ainda não havíamos inciado a maioria dos estudos e discussões sobre diversas teorias que utilizamos hoje como argumento para entender a homossexualidade no contexto social.
Se por um lado Adolfo Caminha coloca o desejo entre dois homens como algo inerente a algumas pessoas, por outro, em muitos pontos ele entra em contradição ao equiparar a homossexualidade com algo pecaminoso. É como se existissem duas forças contrastantes na escrita de Caminha, sendo uma que luta pela liberdade de pensamento e dos corpos e outra ainda imersa em convenções sociais e marcada a fogo por preceitos cristãos. Um trecho que ilustra bem esse conflito aparece logo após Amaro e Aleixo terem sua primeira relação sexual, ao qual o narrador arremata com: "E consumou-se o delito contra a natureza." e mais a frente em outra parte lemos "não havia jeito, senão ter paciência, uma vez que a "natureza" impunha-lhe esse castigo."
Esse mesmo tipo de conflito se dá quando o autor se refere à negritude de Amaro, o bom crioulo. Apesar de Adolfo Caminha ter sido nitidamente um homem com ideais abolicionistas, e de na maior parte da obra ele construir um personagem complexo, humano, devoto, amoroso e meio que parecer defender muitos de seus atos de violência levando em consideração um histórico de racismo e escravidão, seu texto muitas vezes deixa escapar alguns discursos e representações dotados de estereótipos racistas que acabam por legitimar uma ideia ou sensação de inferioridade na diferenciação entre negros e brancos. No livro, quando o negro Amaro aparece com uma característica que se sobressai aos homens brancos é em legitimação de uma ideia fortemente racista da capacidade dos negros em lidar com dores extremas.
Entretanto, já iam cinquenta chibatadas! Ninguém lhe ouvira um gemido, nem percebera uma contorção, um gesto qualquer de dor. Viam-se unicamente naquele costão negro as marcas do junco, umas sobre outras, entrecruzando-se como uma grande teia de aranha, roxas e latejantes, cortando a pele em todos os sentidos.
Essa representação do homem preto, quase que imune a dor segue por todo o livro. Na sequência desse episódio das chibatadas o narrador diz que apenas ao alcançar o número de 150 chibatadas que um filete de sangue se torna visível e começa a escorrer pelas costas de Amaro - algo humanamente impossível.
Uma outra característica que reforça estereótipos racistas está na objetificação do corpo negro. Amaro é visto como um homem que "naturalmente" nasceu para fazer sexo da forma mais selvagem possível e isso é representado muitas vezes nos momentos em que o narrador nos mostra a visão dos outros personagens sobre Amaro e seu corpo e nas partes em que os desejos sexuais do próprio Amaro em relação a Aleixo são narrados.
Seguia-se o terceiro preso, um latagão de negro, muito alto e corpulento, figura colossal de cafre, desafiando, com um formidável sistema de músculos, a morbidez patológica de toda uma geração decadente e enervada, e cuja presença ali, naquela ocasião, despertava grande interesse e viva curiosidade: era o Amaro, gajeiro da proa - o Bom Crioulo na gíria de bordo.
Olhando para a história da escravidão e toda a crueldade que foi realizada em nome dela, percebemos que para que isso fosse possível era necessário um processo de desumanização do povo preto e em muitos trechos vemos essa desumanização ainda presente. Adolfo Caminha usa em demasia características de diversos animais para se referir a Amaro.
O negro parecia uma fera desencarcerada: fazia todo mundo fugir, marinheiros e homens da praia, porque ninguém estava para sofrer uma agressão...
Amaro soube ganhar logo a afeição dos oficiais. Não podiam eles, a princípio, conter o riso diante daquela figura de recruta alheio às praxes militares, rudo como um selvagem, provocando a cada passo gargalhadas irresistíveis com seus modos ingênuos de tabaréu; mas, no fim de alguns meses, todos eram de parecer que "o negro dava para gente".
Dentro do negro rugiam desejos de touro ao pressenti a fêmea.
E o negro sorria orgulhoso, com os seus dentes de marfim, meio aguçados, como presas de tubarão.
Se por um lado "O bom crioulo" colabora e muito para a questão da representação da homossexualidade na literatura brasileira e sua naturalização, por outro, ele faz muito menos em relação à questão do negro e a violência do racismo. É claro que existe na obra uma intenção crítica de retratar uma sociedade racista e muitas das falas e atitudes das personagens, aparecem com esse intuito, mas existem também muitos elementos que nos levam a crer que algumas ideias expostas partiram da própria visão de mundo de Caminha por conta do contexto em que vivia. É um exemplo muito didático do racismo que pode vir sutil como uma brisa e pesado como uma porrada no rosto.
Todas essas problemáticas que levantei não querem dizer que eu não tenha gostado do livro, muito pelo contrário. "O bom crioulo" é de fato uma obra prima e mais um exemplo do porque um clássico se torna um clássico. Para além das questões sobre a homossexualidade e do preconceito racial o leitor também poderá navegar em uma obra que retrata de forma muito íntima o cotidiano dos marinheiros e a forma como estavam sujeitos a maravilhas, mas também a uma espécie velada de escravidão. O trecho abaixo demonstra bem o clima de violência que existia entre os marinheiros e Adolfo Caminha, sem perceber já ilustrou um dos motivos que alguns anos a frente iria culminar na revolta da chibata.
A marinhagem, analfabeta e rude, ouvia silenciosamente, com um vago respeito no olhar, aquele repisado capítulo do livro disciplinar, em pé, à luz dura e morbente do meio-dia, enquanto o oficial do quarto, gozando a sombra reparadora de um largo toldo estendido sobre sua cabeça, ia e vinha, de um bordo a outro bordo, sem se preocupar com o resto da humanidade.
É um retrato interessante sobre o Rio de Janeiro em uma época de convulsão social e de acontecimentos importantes para constituição da sociedade que vivemos hoje, assim como consegue ser um tratado sobre liberdade. Utilizando da figura de Amaro, Adolfo Caminha tece passagens muito bonitas sobre a busca desenfreada por liberdade, uma vez que Amaro não buscava só sua liberdade afetiva e sexual, como também o simples fato de poder ir e vir. A ideia do marinheiro que navega é um prato cheio para falar de liberdade e desse personagem fascinante que deixava a grandeza do mar tomá-lo de uma coragem espartana.
Adolfo Ferreira dos Santos Caminha (Aracati, 29 de maio de 1867 — Rio de Janeiro, 1 de janeiro de 1897) |
Simplesmente perfeito!
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