O templo de Stephen Spender (Editora 34, 2019) é um livro com muitas passagens auto biográficas, que se misturam com a ficção.  Nesse processo, estabelece ótimas discussões sobre poesia e literatura, fotografia, música, história, sociedade, homossexualidade, sexo e sexualidade, dentre outros temas. Spender cria uma obra importante para entender os códigos sociais de um outro tempo, uma outra época, assim como a importância das artes para formação e desenvolvimento de uma sociedade, de um país e de como a violência, o fascismo e o nazismo escorre silenciosamente  pelas sarjetas, inicialmente apenas molhando nossos pés, para em seguida entupir bueiros e explodir com toda violência que a repressão e morte carregam consigo. O "templo" se passa num período entre guerras e nos diz muito sobre essa fase do deslizar entre sarjetas.


Os manuscritos de "O templo" foram recusados em meados de 1930 por terem sido considerados "pornográficos e difamatórios". As menções a sexo e sexualidade no livro, e até mesmo a forma como trata da homossexualidade em si, nada se aproxima de uma descrição pornográfica. Olhando com os olhos de hoje, eu como leitor, fiquei na expectativa de que as relações homossexuais tivessem sido tratadas de forma mais explícita e excitante, tanto pela propaganda e censura que o precedem, como pelas descrições das personagens, que são homens belos, jovens e com a ânsia de viver intensamente suas descobertas e prazeres. Portanto, o "pornográfico" aqui fica por conta da homofobia e da necessidade de apagamento das narrativas com temática gay que olham para a pornografia apenas pelo lado degradante. O livro só foi publicado em 1988.

Acredito que fora considerado difamatório pela forma como consegue esmiuçar dentro de uma narrativa literária como uma sociedade, um país pode ser devastado por processos políticos que não são democráticos e inclusivos, e principalmente por um entre guerras e pela ascensão de movimentos e atentados que sabemos hoje, culminaram na tomada de poder dos nazistas. "O templo" coloca o dedo nessa ferida, mostrando como boa parte dos alemães mal sabiam o que estava acontecendo de fato, enquanto outros aproveitaram para colocar pra fora sua intolerância.

Em um dos potentes diálogos do livro, em conversa sobre a situação da Alemanha, as personagens expõem que " o terrível é existirem tantas pessoas que são nazistas no coração sem pertenceram ainda ao partido" o que nos remete à aqueles que comungam de ideais preconceituosos e excludentes como visão de mundo. Em outra parte impactante do livro é dito que "quando a vasta maioria dos alemães se sente muito alemã, a minoria pode começar a sentir-se um pouco estrangeira."

Sendo assim, o livro acaba por colocar, também a Alemanha, a república de Weimar, como uma personagem da história ao mesmo tempo que acompanhamos os passos do jovem poeta Paul Schoner. Paul é um inglês apaixonado pela Alemanha que acaba tendo a oportunidade de passar uma temporada no país para se dedicar à escrita de suas poesias e de um romance. Ele fica hospedado inicialmente na casa de uma família milionária, a convite do também jovem Ernst - rapaz controverso e cheio de questões conflitantes em relação a seu futuro e a lida com a própria família.

Através do convívio com essa família, Paul Schoner, que nitidamente se trata do próprio Stephen Spender, irá conhecer outros rapazes que assim como ele comungam de um espírito que anseia por liberdade, por conhecimento, pela apreciação e produção de artes, pelo sexo livre em uma Alemanha pós primeira guerra mundial, que ironicamente experimenta uma liberdade nunca antes vista pela antiga geração de alemães e nem por Paul que até então tinha apenas referências da sociedade inglesa.

Observava os jovens alemães. Tinham um estilo que ele achava excitantemente 'moderno'. Moda para eles era o sol, o ar, suas peles bronzeadas. Os rapazes, meigos e tranquilos, as garotas, esculturais. Havia  uma certa bravura no show de felicidade que exibiam. 

O livro descreve as vivências de Paul (Stephen Spender) com personagens que também estão a disposição da ficção, mas que representam pessoas reais, amigos e escritores como W.H Auden, Christopher Isherwood e o fotógrafo Herbert List que na narrativa é Joachim, um personagem de personalidade excitante e desbravadora, características que coloca em suas belas fotografias.





Em "O templo" nos deparamos com muitas referências a obras de arte, músicas, personalidades das artes e da política, acontecimentos que fazem com que a gente interrompa a leitura para fazer algumas pesquisas. Eu, particularmente, adoro livros que me movimentam a esse ponto, pois além de ser um adendo à experiência de leitura, agrega conhecimentos importantes sobre coisas que ainda não conhecíamos. Esse processo não acontece com didatismo, uma vez que ele está ali muito bem costurado em forma de literatura, como a bonita descrição que reescrevo abaixo de uma das obras de Picasso.

Na galeria, uma pintura moderna impressionou Paul particularmente: o retrato de uma mulher sentada à mesa de um café, os ombros embrulhados  num xale apertado, os cabelos caídos numa massa confusa, a cabeça baixa, um pequeno copo, como um cálice de veneno, à sua frente. Os olhos cerrados, os lábios comprimidos, o rosto fechado, pareciam os de alguém totalmente aprisionado no seu próprio mundo de miséria. Uma pequena placa de metal dourado, embaixo, na moldura, dizia que se tratava da Absinthtrinkerin, de Picasso.


Com a mesma genialidade e sensibilidade somos mergulhados em referências literárias que vão de Thomas Mann a Rainer Maria Rilke e se inserem no dia a dia das personagens como na parte em que o grupo de amigos bebe, flerta e dança em um dos bares perto do Porto da cidade:

Compreendo o que Paul quer dizer. Esta sala estimula a criatividade da gente, não é verdade? Todos os diferentes personagens aqui presentes formam um quadro, um desenho, uma unidade, uma composição, como as pétalas de um girassol. Aquele homem que dança sozinho me lembra uma cena de "Os cadernos de Malte Laurids", de Rilke. Eu sinto, como você, Paul, que de algum modo a gente entra numa visão alucinatória desses pares dançando. A gente frui de um claro prazer estético. Você e eu, Paul, somos um com toda a humanidade.

Enquanto Paul olha para sua realidade, o que acontece a sua volta e registra em seu caderno de notas, podemos dizer que um retrato rico da sociedade alemã toma forma. "O templo" é uma obra de referência para se pensar sobre as nuances de um entre guerras e de como o absurdo pode nos pegar de surpresa por nunca acreditarmos que o absurdo possa ganhar voz e tomar o poder. Aqueles amigos que antes se preocupavam com a poesia, com as bebedeiras pelos bares da cidade, com as viagens e as experiências sexuais, agora se vêem em um ambiente onde explodem brigas de ruas com simpatizantes do partido nazista, onde tiros ecoam de repente e pessoas são esfaqueadas a luz do dia. Agora precisam lidar inclusive com a adesão de pessoas próximas ao ideal do partido nazista.

"O templo" é um livro precioso que nos devassa e nos perturba, mas que também nos faz abrir os olhos para a beleza das artes e como elas são âncora em momentos de grandes atrocidades. A arte sempre resiste e persiste e aqui nos é apresentada em uma obra de ficção, mas também autobiográfica e histórica. "O templo" que pode ser o corpo, uma nação e o nascer de "uma visão do desespero que espreitava para além e por detrás de tudo - uma visão de mundo."