Ponto Cardeal de Léonor de Récondo é o livro de abril de 2020 da TAG Experiências Literárias lançado em parceria com a Editora Dublinense. A temática central do livro é a transexualidade. Laurent, personagem da nossa trama é um pai de família e possui um casamento tranquilo. A questão é que possui um ponto de fuga que ainda não entende muito bem, mas que o faz se aproximar de uma verdade mais verossímil e alinhada com o que sente em seu íntimo. Laurent diz sempre à esposa que vai para a academia, mas seus passos o guiam para um clube e bar onde pode se travestir de Mathilda e experimentar códigos e vestimentas femininas que parecem combinar muito mais com sua pele.


Essa foi minha primeira leitura que trata diretamente da transexualidade e que tem uma personagem principal que explora o universo que envolve o processo de transição de gênero. O texto de Léonor, que é uma escritora francesa premiada, pelo menos para esse projeto, é simples e direto. Não acredito que isso seja um problema, principalmente quando se trata de uma temática tão cheia de tabus, dúvidas, preconceitos e que ao mesmo tempo desperta a curiosidade das pessoas. É muito difícil uma publicação como essa se desviar de uma missão formativa e informativa.

A história de Ponto Cardeal é fluida e coesa, mas senti a necessidade de que a escrita estivesse mais ligada e que caísse de cabeça na exploração das possibilidades e características que os gêneros literários possuem. Um texto pode ser simples, direto e ainda assim flertar com usos das palavras que possam conferir um caráter mais artístico para a obra.



Além de achar o texto auto explicativo demais, em alguns momentos a narrativa se torna muito corrida, sem dar uma atenção necessária aos impactos das decisões das personagens diante de acontecimentos muito sérios e mpactantes. A gente se prepara para um clímax que não vem e isso acaba, na minha opinião, impactando na experiência de leitura.
Muitos diálogos e reações não são muito críveis, talvez pelo objetivo da escritora de criar uma história mais positiva sobre um assunto onde geralmente só são veiculadas as tragédias, as violências.

Ainda assim, avalio Ponto Cardeal como um bom livro. Para quem não entende muito bem sobre a transexualidade e os desafios da transição, essa é uma publicação que pode dar um norte sobre o assunto e permitir uma aproximação do leitor com questões que nunca entram em pauta no meio das pessoas cis gêneros, ou seja, que se identificam com o gênero que foram designadas ao nascer. É um livro que pode colaborar com a conscientização de que a transexualidade não é uma patologia e que nem sempre terá relação com a forma como uma pessoa vive sua sexualidade. Ponto Cardeal ajuda a demonstrar que não dá mais para olhar para as questões de gênero e sexualidade apenas pela ótica do binarismo e nem dividí-las em regras imutáveis.

O livro explora bem a importância de se respeitar a forma como uma pessoa transgênero quer ser chamada e como isso pode colaborar com seu processo de auto aceitação e até sua saúde mental. Em um dos trechos o Laurent, quando ainda está caminhando para se reconhecer como mulher trans, fica bem emocionado quando uma amiga diz "você não está sozinha" e então Laurent chora e o narrador arremata: "Cynthia o tinha colocado em palavras." Esse cuidado com a expressão de gênero e nome social aparece também na postura do narrador. Descreve Laurent no masculino quando diz da época em que ele ainda não havia encarado de frente sua realidade e no feminino a partir do momento que encara sua condição.

O projeto gráfico dessa edição também é um ponto forte. A positividade e leveza da escrita foi transportada para as cores e ilustrações presentes no livro. Ele é cheio de respiros que fazem com que a gente se detenha às ilustrações e diagramação.

É muito bom ver um livro como Ponto Cardeal entrando no mercado editorial brasileiro. Somos o país que mais mata transexuais no mundo e a informação pode ser uma grande aliada para se reverter esse dado vergonhoso. Quanto mais conhecermos sobre a pluralidade e diversidade que fazem parte da humanidade, mais rápido caminharemos para construção de um mundo que celebra as diferenças e defende o direito de cada um viver exatamente o que se é.