Garoto devora universo (Harper Collins, 2019) é o livro de estreia do escritor australiano Trent Dalton. É um romance onde o autor revisita acontecimentos importantes e memórias da infância para contar uma história cheia de simbolismos e discussões sobre o bem e o mau, sobre o que fazemos com nosso tempo e o que é o tempo, sobre amizade, sobre a violência como âncora e como berço de problemas que podem impactar vidas.


Grande parte da narrativa de "Garoto devora universo" é inspirada em acontecimentos reais. Na história Trent Dalton se transforma em Eli Bell, um garoto que vive com a mãe, seu irmão August, o padrasto Lyle e um grande amigo de toda a família chamado Slim Halliday. Essa seria uma configuração de família comum se não fosse o caso de sua mãe e seu padrasto serem grandes traficantes de drogas e de o próprio Slim ser um famoso ex-presidiário condenado por assassinato de um taxista e ser um recordista de fugas espetaculares da prisão de Boggo Road. As fugas de Slim o alçaram a quase uma personalidade, uma lenda. 

Os grandes protagonistas são Eli Bell e August. Eli tem apenas doze anos no início da história e Gus, seu irmão, é um ano mais velho. Por algum motivo August fez um voto de silêncio e só se comunica escrevendo palavras no ar, desenhando com o dedo indicador. A vida dos irmãos Bell entra em ebulição quando encontram uma sala secreta na casa em que vivem, onde está escondido  um telefone vermelho e a voz de homem faz revelações enigmáticas sobre a vida e o futuro da família demonstrando conhecer a intimidade de cada um deles. 

O escritor Trent Dalton conseguiu criar uma história com doses muito bem medidas de violência e fantasia. Os irmãos Bell são garotos especiais que se vêem obrigados a aprender a olhar para a vida de uma maneira diferente. Por estarem imersos em uma realidade difícil, de vulnerabilidade social e de perigos iminentes à espreita por conta da ocupação dos pais, é como se os dois garotos tivessem criado uma realidade paralela para lidar com o desconhecido, com o medo, com a dor e a violência. Trent deixa a cargo do leitor a escolha pelo que vai acreditar. A violência está posta e é bem palpável, pois conseguimos fazer inferências com histórias muito próximas e bem recorrentes nos jornais. A magia também está sob a mesa e eleva o livro a uma narrativa deliciosa onde acompanhamos a força do amor entre irmãos e a intensidade do desejo de proteção das pessoas amadas e da família. 

Só que o August cuidava da mãe como se ela fosse um cervo selvagem perdido que estivesse aprendendo a andar, porque ele parecia saber um segredo sobre tudo aquilo, que era só uma fase, uma parte da história da mãe que simplesmente tínhamos que esperar para passar. Acho que o August acreditava que ela precisava daquela fase, que merecia o descanso drogado, o sono longo, o tempo fora do próprio cérebro, a pausa de ter que pensar no passado - uma sequência de fotos de trinta anos de violência e abandono e lares para garotas rebeldes com maus pais em Sydney. August penteava o cabelo dela quando ela dormia, puxava o cobertor sobre o peito dela, secava a baba da sua boca com lenços de papel. August era seu guardião e me cobria de porrada e empurrões se eu demonstrasse crítica e nojo. Porque eu não sabia. Porque ninguém conhecia a mãe, só o August. 

Garoto devora universo faz reflexões incríveis sobre o bem e o mau ao nos apresentar cada personagem. Isso é ilustrado através das relações de afeto de Eli e Gus com as pessoas que os rodeiam. A ideia de que ninguém é só bom ou só mau é um prato cheio da história. Elie olha para seu padrasto, que é sua figura paterna de referência e uma pessoa que o cria como se fosse filho biológico e se pergunta o que é ser mau. Olha para Slim, amigo que ama profundamente e que dedica horas de conversas e aconselhamentos ao garoto e se pergunta o que leva uma pessoa a tomar decisões erradas.  Em certa conversa Slim diz a Eli "Luz e sombra garoto. Não dá pra fugir da luz e não dá pra fugir da sombra." 

Entramos numa reflexão sobre a existência humana e questionamos normas e definições de comportamento. Estamos diante de um livro que fala sobre condição social e o que pode levar uma pessoa a  trilhar um caminho fora da curva e que as colocam à margem de uma sociedade que está sempre a postos para julgar. Elie Bell usa muito a própria história da sua mãe para tentar entender o desenho de vida de uma pessoa. Como diz no livro, é preciso uma investigação de qual foi a "gota no lago", ou seja, aquilo que provoca todas as ondulações na vida de alguém e no caso da vida da mãe dos irmãos Bell a gota no lago foi o abandono do pai quando ainda era criança. 

Eli e Gus partem em uma busca pela proteção da própria família e também numa jornada por respostas sobre a linha tênue que separa o bem e o mau, uma vez que as pessoas que mais amam estão longe de serem um exemplo de retidão e honestidade. Lendo Garoto devora universo entramos em reflexões sobre as diversas nuances, violentas como o decepar de um membro e sutis como uma discussão familiar, que podem definir a trilha de como a vida será seguida. Os garotos devoram o universo porque querem respostas e um novo caminho a seguir e  a gente devora o livro porque nos encontramos com nós mesmos e o nosso possível outro lado da moeda.