Tudo é rio da Carla Madeira (Quixote, 2014) foi uma grata surpresa. Não conhecia o livro e nem a escritora e terminei a leitura arrebatado pela beleza da história e pela força da narrativa. É um livro que já te conquista nas primeiras frases e vai tecendo uma escrita fluida mas não comum, poética mas não piegas, que é brincalhona com algumas palavras e bem séria com outras. Que pisa nas nuvens e bota o pé na lama para nos dar uma dimensão da complexidade humana e suas relações. Tudo é rio visita céu e inferno e a gente fica nas entrelinhas de olhos fixos, captando alegrias e dores que são ingredientes da história e tentando não piscar.


Conta a história de um triângulo amoroso que se forma após uma grande perda, uma grande tragédia. Um casal que se ama muito acaba se desencontrando apesar de permanecerem num mesmo lugar, num mesmo status de vivência, onde uma presença ausente será instrumento de punição e descoberta. Uma história temperada por amor e sofrimento quase na mesma medida e com um erotismo que fica entre o choque e a excitação. É tudo um rio intenso e o leitor embarca numa jangada a ponto de virar.

Uma das personagens principais é a jovem Lucy, uma puta das mais profissionais, que gosta do que faz e faz bem feito. Nas descrições de Lucy a autora não poupa palavras e desejos para falar de uma forma muito aberta sobre sexualidade feminina. Além disso, acredito que a autora contribui e muito com algo que é a humanização das putas, das profissionais do sexo. Carla Madeira bate de frente com as hipocrisias sociais ao explorar algumas vivências que vão muito além da prostituição como algo inominável e relegado à penumbra. A personalidade de Lucy é algo desafiador nessa obra literária, pois ela rompe com a narrativa da puta pecadora, sofredora e que sonhava estar em outro lugar para apresentar uma puta que sabe onde está e ali quer permanecer, mas que ao mesmo tempo está ciente de todos os percalços que vai encontrar.


Se livrar da tia não era pouco, mas era o de menos. Existia uma cidade inteira pronta para atirar pedras. Uma cidade atrás das cortinas, espiando pelas frestas, tomando conta da boa conduta, com as chaves do céu na mão distribuindo merecimentos. Como ser invisível com tantos olhos procurando pecados? Não era fácil ser puta. Era preciso escolher quem. Onde. Quando. Quanto. Muita coisa para imaginar antes de abrir as pernas.
Quando nos apresenta Lucy, tia Duca, tio Brando, Venâncio, Dalva, Aurora, e demais personagens é como se observássemos uma espécie de árvore genealógica dos fatos. É como se olhássemos a vida como um leito, onde tudo é rio, tudo está interligado, tudo é fluido e líquido, onde tudo pode ser sintoma de ciclo, de cadeias que vão tramando os acontecimentos da vida. O livro vai e volta em seus capítulos, nos dando algumas pílulas para entender as circunstâncias de tudo. Somos apresentados a momentos cruciais do passado de nossas personagens, a ponto de nos sentir íntimos. Estamos diante de um divã de terapia que nos dá instrumentos para tirar conclusões sobre as alegrias e as tragédias e vez ou outra analisar com nosso próprio juízo de valor cada tomada de decisão. O próprio narrador em certos momentos assume voz apaixonada diante do clímax da história.

Fica forte para o leitor a condição feminina, a força da maternidade e o perigo eminente de anulação dos próprios desejos em detrimento do que a sociedade definiu como papel de uma mulher. As mulheres de “Tudo é Rio” navegam entre a servidão e a expansão feminina, cada uma a seu jeito consegue firmar seu lugar no mundo. Ficou muito marcante pra mim o modo como narrador descreve a forma de ser da personagem Duca, tia de Lucy ao dizer que ela:

“poucas vezes pensava em si mesma… estava sempre na urgência do outro ou na vigília do passo alheio. Passava a vida tomando providências, mandando limpar, mandando passar, mandando consertar, mandando rezar.” 

Como dito no texto de apresentação da obra, é um livro para ser bebido de um gole só e a gente bebe e se embriaga.