Se Deus me chamar não vou da Mariana Salomão Carrara (Editora Nós, 2019) é um romance onde acompanhamos de perto os pensamentos de uma menina de apenas onze anos de idade - quase doze (ela gostaria que isso ficasse bem claro). Maria Carmem é simplesmente genial, de inteligência e perspicácia acima da média. Após descobrir que possui intimidade com as palavras e a escrita, começa a registrar em seu arquivo no word tudo que se passa em sua vida, o que depois ela vai chamar de livro, pois quer ser escritora. Assim, passamos a ter acesso a um verdadeiro ensaio sobre crescimento e demais descobertas da vida, através do olhar de uma criança. Maria Carmem se pergunta e também responde, observa e tenta entender os porquês em relação a questões de gênero, orientação sexual, relação com os idosos, preconceitos, amizade, amor.

Eu pareço bem mais velha do que eu sou, porque sou muito mais alta e tenho peso, então as pessoas concluem que eu tive mais tempo para crescer e engordar e, por isso, só posso ser mais velha. Daí a idade que pensam que eu tenho não combina nada com a roupa que eu uso, e com a minha voz e as minhas perguntas.
Maria Carmem inicia seu processo de escrita com uma atividade da escola, ao escrever uma redação hilária em que bate um papo com o Homem-Aranha e depois compartilhava com a sua professora a título de correções e toques necessários. Até que ela nota que sua percepção sobre os colegas e a própria dinâmica da escola poderiam gerar alguns incômodos e fica com a escrita para si. Resolve registrar o seu ano.
Esta é a história deste ano, deste meu ano, não do ano de todo mundo, porque cada um está tendo um ano todo seu e eu só posso contar a história do ano que é meu. A não ser quando eu for escritora, aí sim vou poder contar a história do ano dos outros.
Uma das coisas mais fantásticas sobre “Se Deus me chamar não vou” está na forma como a autora coloca uma criança no centro da narrativa. O tempo todo, enquanto lia a obra, fiquei pensando nas crianças com quem convivo e a forma como nós, adultos, dedicamos a maior parte do nosso tempo em evitar que as crianças morram. O senso de proteção física vem acima de tudo e acabamos nos esquecendo de que, às vezes, uma criança também quer ser verdadeiramente ouvida e vista como um indivíduo. É uma pena que nos esqueçamos desse sentimento de ver tudo pela primeira vez quando vamos nos tornando adultos. Talvez assim, seríamos mais atentos em relação às descobertas e individualidade das crianças.
São diversos os temas que perpassam a mente aguçada de Carmem e a reflexão sobre a escrita e o que é ser uma escritora são um dos destaques do relato.
Minha professora falou que eu escrevo muito bem. Eu nem sabia que era possível escrever mal, pensava que ou se sabia escrever, ou não.
O ato de escrever soa tão natural para Carmem, que o texto surge como se escrever fosse o mesmo que respirar e, por vezes, diante dos sofrimentos que a vida impõe, mesmo a uma criança, percebemos que a escrita realmente é o seu respiro, a sua forma de organizar o mundo. A menina olha com curiosidade para a vida e para sua própria produção. É assim e não pela consulta à gramática que ela descobre, por exemplo, como encerrar capítulos.
Não sei em que momentos encerrar capítulos. Decidi que cada vez que eu precisar sair do computador, tipo para tomar banho, comer ou ir para a escola, vou encerrar um capítulo. Assim os capítulos do livro vão ficar parecidos com os capítulos da vida de verdade.
Não serão poucas as vezes que você irá gargalhar com as reflexões de Carmem. Seu olhar irônico sobre a vida surge não da intenção de ser irônica, mas do fato de que seu olhar é verdadeiramente analítico e sincero. Carmem mostra que se pararmos para olhar com a devida atenção para o cotidiano com um pouco da curiosidade de quem está descobrindo o mundo, veremos que algumas de nossas convenções sociais podem soar bastante questionáveis e até mesmo ridículas.
Por exemplo, um guarda de trânsito. Quem coloca ele ali? Quem paga esse homem? Se eu pudesse chutar diria que é a prefeitura, mas eu chutaria prefeitura para tudo. Ou, ainda, quando meus pais chamam em casa um homem pra consertar alguma coisa, e dão muito pouco dinheiro, é evidente que aquele homem não estudou, e então quem ensina um adulto que não estudou a fazer algo que é tão difícil que dois adultos que estudaram não conseguem fazer? A prefeitura também?
Maria Carmem é solitária, o que ela define como “pior idade do universo” e justamente a sua solidão que aguça a interpretação sobre tudo que a rodeia. Em casa não falta nada a Carmem, mas seus pais passam quase todo o tempo lutando para que o negócio da família vingue. Eles herdaram uma loja que vende todo tipo de produtos geriátricos, o que Maria Carmem chama de “loja de fazer velhos”. A menina os ajuda sempre que pode e sua observação sobre os idosos que utilizam dos serviços da família, também ajudam a formar seu caráter e sua empatia perante as pessoas.
Minha mãe diz que quando eu for mais velha todos esses colegas que eu hoje admiro vão me causar pena e eu vou rir dessa minha inveja. Mas quando eu for mais velha vou precisar de fraldas e andadores e meias de compressão, então essa risada não vai valer de muita coisa. Acho que existem crianças mais solitárias que os velhos.
Mariana Salomão Carrara descreve também a forma como a garota vai descobrindo seu próprio corpo e os códigos que a sociedade utiliza para colocar as pessoas dentro de estereótipos que parecem intransponíveis.
Esse ano eu descobri que sou gorda. Ou pelo menos um pouco gorda. Nunca tinha verdadeiramente me dado conta disso, só ia pondo roupas largas e achava que desse jeito ninguém ia perceber, e não tinha importância. Só que fui fantasiada de Branca de Neve pra uma peça da escola, e um colega me disse que essa princesa estava muito gordinha. E dentuça. Descobri isso também, o problema com os dentes.
Com seu texto sem falhas, Mariana Salomão Carrara nos insere em uma vida inteira de um fôlego só, em um livro que consegue ser belo, engraçado e denso ao mesmo tempo e que também nos transporta para memórias da infância que talvez estivessem esquecidas, nos lembrando que ser criança pode ser muito solitário.