As viúvas passam bem de Marta Barbosa Stephens (Folhas de Relva Edições, 2023) finalista do Prêmio LeYa de 2021 é um romance que se passa na cidade do Recife em meados dos anos 90 e nos apresenta a uma gama de personagens complexos e cativantes. Dentre eles, estão as viúvas Margarete e Guiomar, duas mulheres que vão perceber, que apesar de toda a dureza da vida, a mesma é feita de um movimento que pode nos levar a lugares nunca antes imaginados.
Margarete e Guiomar são vizinhas de porta e após uma violenta briga, por motivos torpes, seus respectivos maridos, Richard e Alexandre se matam. Com direito a golpes de faca e um único tiro certeiro, o corredor do prédio vira uma piscina de sangue e o destino das duas famílias se entrelaçam em uma corrente de ódio. As mulheres se tornam inimigas, entram em uma briga que nunca perde fôlego e que é acompanhada de perto pelos moradores da vila.
O ódio entre Margarete e Guiomar era genuíno, tão explicável e entendível que não havia lados ou partidos entre os moradores da vila. Ninguém torcia por uma, ou por outra. Alguns talvez torcessem contra as duas, e sigilosamente desejassem que sumissem, aliviando-os de presenças tão pesadas.
A narradora do livro é uma mulher adulta revisitando suas memórias de adolescência. Aparentemente, ela acompanhara de perto a história de Margarete e Guiomar. Partindo de suas memórias fragmentadas e do típico “disse me disse” da vizinhança perante uma história que se tornara quase uma lenda de tão famosa, faremos um passeio pelo passado e o presente das duas viúvas e de uma série de personagens importantes para entendermos o universo que as rodeiam.
O que descrevo a seguir, permita-me alertar, tem origem no olhar de uma menina de 13 anos, abobalhada pelas descobertas de sua idade e curiosa por tudo o que não lhe era familiar. Possivelmente, muita coisa foi fantasiada. Não posso me assegurar de toda a verdade com tantos anos de distância. Ainda mais por ter sido uma adolescente presa no mundo paralelo das histórias e personagens que criava, e só eu via.
Após a morte de seus maridos e convencidas de que o amor já não seria mais uma realidade em suas vidas, a vingança passa a ocupar um lugar de importância na vida de Margarete e Guiomar. Enquanto cuidam das tarefas de casa, do pagamento das contas e da educação dos filhos, sempre arrumam um tempinho para acender uma fogueira embaixo da janela da outra e com precisão para que a fumaça chegue a seu destino, descartar a correspondência alheia no lixo para perder prazo de boletos e convites de festas, trocar, embaralhar e sumir com os cadernos do jornal do dia, dar um sumiço no gatinho de estimação, desaparecer com o vestido que seria usado em uma festa.
Apesar de estarmos diante de duas mulheres enlutadas que compraram uma culpa e uma briga sem sentido, as passagens onde as vinganças são relatadas acabam sendo muito engraçadas. Como não são capazes de perpetuar uma violência extrema, como a executada por seus maridos, as viúvas se dedicam a pequenas trolagens diárias que se arrastam por anos, como se tivessem feito um pacto de ódio que nunca poderia ser quebrado. Desconfio, inclusive, que com o passar dos anos, o ódio de Margarete e Guimar se tornara mais um costume, uma tradição, do que um sentimento em si.
Nossa narradora nos leva até o passado das viúvas e esses capítulos memorialísticos são muito interessantes, pois passamos a entender um pouco mais das intenções de Margarete e Guiomar e porque se tornaram tão apegadas a seus casamentos, a ponto de acreditarem que com a morte daqueles homens, a parcela de amor pertencentes a ela, nesta vida, simplesmente acabara.
Revisitando o passado das viúvas, também vamos conhecer outros personagens tão interessantes quanto elas. A junção das histórias de vida das mulheres vai se somando às histórias de outras mulheres e homens que também foram atingidos por episódios de violências e perdas. O desfilar das memórias é feito com habilidade e fluidez. Como a escrita é envolvente e os capítulos são curtos, nos vemos presos em uma teia de fatos, onde cada início de capítulo apresenta um gancho narrativo e temporal que nos impede de deixar o livro de lado.
“As viúvas passam bem” é um livro sobre amores e afetos e trabalha bem com a noção de que tais sentimentos não são simples e não bastam por si só. A Marta Barbosa Stephens desenhou algo complexo, que são as relações humanas, através de um texto simples e com camadas onde ninguém pode ser definido como bom ou mau. Nem Margarete e nem Guimar são vilãs. Não existe uma luta do bem contra o mal. Existem personagens lutando para sobreviver com as armas que aprenderam a usar desde que nasceram. Narrador, personagens, o decorrer da vida e o próprio Recife, ajudam a compor uma obra magnífica que é mais um exemplo da qualidade da literatura contemporânea brasileira.
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