Sou uma tola por te querer da escritora argentina Camila Sosa Villada (Editora Tusquets, 2022) é um livro de contos singular e a obra chama atenção pela forma como constrói as narrativas. Através de um tom que mescla realidade e fantasia, embarca em temas que na maioria das vezes são vistos apenas pelo viés de sua dureza e violência. A visibilidade das mulheres trans é o mote principal da obra e para quem costuma ignorar essas vivências, as histórias do livro podem soar como uma oportunidade de humanização de uma parcela da sociedade que ainda é muito marginalizada, mas que entrou com unhas e dentes no embate através da apropriação da palavra.


A escrita é confessional e ao mesmo tempo visceral. Como a autora possui experiência de atuação nos palcos, no cinema e na televisão, percebemos fortemente a escrita, a performance e a oralidade em uma dança espetacular. O primeiro conto, que tem forte teor autobiográfico, é uma grande abertura para o que iremos encontrar adiante, onde as personagens aparecem, cada uma a seu modo, rompendo silêncios e reivindicando o uso da palavra e da narrativa.

Não posso evitar escrever sobre a violência, porque escrevo coisas que vivi.
A obra foi a minha porta de entrada para a escrita de Camila Sosa e acredito que não poderia ter começado melhor. Os contos propiciam diversas formas de exploração do exercício da escrita e em “Sou uma tola por te querer”, Camila nos presenteia com diversas experimentações ao abordar a vivência travesti. A escritora possui uma destreza admirável com o uso das palavras, daquele nível de nos fazer arrepiar com algumas passagens.

Durante todas as histórias, somos apresentados a personagens fortes e muito bem construídos, onde a nossa imaginação opera ao criar situações e cenários por onde o universo criado pela autora desfila. Camilla Sosa embarca em um estilo latino americano de contar histórias que nos remetem diretamente à força da oralidade, como também existe ali algo bem “almodovariano”, que nos faz sonhar com uma parceria entre essas duas mentes criativas.

É impossível não sair impactado pelo conto que dá título ao livro, onde a autora transforma Billie Holiday e Louis Armstrong em personagens. Na história, Billie se torna amiga das travestis Maria e Ava, após uma noite intensa de bebedeiras e drogas. Nos deparamos com tudo aquilo que é considerado “lixo e luxo” transitando de mãos dadas, em uma história onde a autora conduz a narrativa exatamente para onde bem entender e é nítido como ela coloca as travestis como figuras redentoras.

Trouxeram para mim seu penúltimo disco, Lady in satin, produzido inteiramente com cordas. É meu disco preferido, direi isso por toda a eternidade. Tinha uma dedicatória: ‘María, sou uma tola por te querer. Billie’. Um beijo estampado com batom cor de terra.
O conto “Sou uma tola por te querer” poderia ser chamado de uma verdadeira opera rock, se não fosse uma verdadeira “opera jazz”. É uma delícia embarcar no ritmo e na cadência que Camila Sosa constrói para o conto. Com muito lirismo, ela brinca com a tensão entre a ficção e a autobiografia, ao mesmo tempo em que sentimentos como solidão, amor, rejeição e perda são explorados de forma intensa, partindo da inspiração na música de Holiday.

“Sou uma tola por te querer” é uma literatura marginal e sua maior potência está aí. Ao apresentar personagens fora do convencional e que desafiam a norma social, Camila Sosa faz com que a existência de pessoas marginalizadas e oprimidas ocupem seu espaço no mundo. A narrativa voltada para as feridas e para a resistência, além de terem um caráter provocativo, também podem ser uma voz potente para a denúncia da violência. Em um mundo onde as representações de gênero, identidade e sexualidade decidem quem vai viver e quem vai morrer, é lindo ver como Camila Sosa Villada utiliza da literatura como campo de resistência.