Não fossem as sílabas do sábado da Mariana Salomão Carrara (Editora Todavia), ganhador do Prêmio São Paulo de Literatura, é um romance que demonstra, mais uma vez, a capacidade da escritora em contar histórias com teor altamente emocional, ao mesmo tempo em que explora palavra e narrativa. Mariana possui um jeito muito peculiar de escrever, fato que a coloca entre os principais nomes da literatura brasileira contemporânea. Certa vez, a poetisa Adélia Prado, ao refletir sobre a dificuldade de manter o olhar poético perante a realidade, escreveu que às vezes "olho pedra e vejo pedra”. A Mariana Salomão em “Não fossem as sílabas do sábado” olha para um acontecimento dramático e trágico, e surpreendentemente, continua a ver poesia. Ainda que, por vezes, seja a poesia mais cortante que você possa ler.


Mas é importante para as tragédias que elas sejam descobertas imediatamente, porque cada segundo que elas passam ocultas vira um ano a mais de luto, isso é um capricho que as desgraças têm.
Na história conhecemos a Ana, uma arquiteta com uma vida estável e com um casamento feliz que tem sua rotina transformada por uma queda. Ana esperava impacientemente seu marido André encontrá-la a poucos quarteirões do prédio em que moram, para ajudar a carregar uma moldura para casa. Ao mesmo tempo em que André saía apressado do prédio, Miguel, um vizinho que morava ali pelo décimo andar, pulava de sua janela para uma morte que deveria ser apenas dele, mas que o acaso quis que não fosse.

De um segundo para o outro, Ana se vê viúva e sua vida se entrelaça com a de outra mulher – Madalena, a viúva de Miguel. Duas famílias que mal sabiam da existência uma da outra, se cruzam por conta de uma tragédia. A morte de André fora tão repentina que Ana nem tivera tempo de anunciar que estava grávida. Seria uma surpresa junto com a moldura. A partir daí, acompanhamos uma mulher gestando morte e vida.

Era preciso revelar a cada almofada que dali em diante não havia mais o abraço dele…, era preciso explicar para as nossas bebidas guardadas, era preciso que eu parasse de descobrir logo novos detalhes do André, [….] André morto de repente me revelando uma obsessão por estocar pastas de dente, guardar meias dentro dos sapatos, é necessário que um apartamento morra junto, não se pode deixar que sobreviva porque tudo toma um ar fantasmagórico.
A narrativa de “Não fossem as sílabas do sábado” é angustiante, pois temos acesso aos sentimentos mais profundos de uma mulher em luto por conta de um acidente tão incomum que beira o grotesco. Ana olha para o acontecimento sob diversas perspectivas e através de todas elas a dor continua a mesma. Como todo enlutado, ela se vê rodeada de “e se...”. E se eu não tivesse insistido para o André me encontrar? E se André tivesse pelo menos parado para conversar um pouco mais com o porteiro? E se ele demorasse um pouco mais para descer as escadas?

Nesse ciclo de perguntas e nessa necessidade de respostas, a fim de aplacar a dor, a narrativa entra em um dos pontos mais angustiantes em minha opinião, que é a aproximação que ocorre entre Ana e Madalena. A relação entre as duas é de pura tensão. Enquanto Ana está moldada em dor e revolta, a ponto que o nome de Miguel ou qualquer outro detalhe sobre sua vida é proibido ser mencionado entre as duas, Madalena carrega uma espécie de culpa que transforma em atos de serviço. Ela tenta compensar a grande perda de Ana (e a sua) ajudando a cuidar da casa de Ana, da saúde de Ana e também de Catarina, filha de Ana e André. Cada encontro das duas mulheres é como um macabro encontro de casais, pois André e Miguel estão sempre presentes, ainda que pelo peso da ausência.

O livro gira em torno das questões que perpassam luto e memória, onde estrutura e estilo narrativo nos conduzem de forma não linear por capítulos breves e intensos que obedecem ao fluxo de consciência de Ana. “Não é que o tempo diminua a saudade, o que ele faz é diluir a memória.” O texto é lírico, poético e ao mesmo tempo brutal, o que nos faz vislumbrar os processos de luto da narradora. Ao mesmo tempo que em uma frase Ana possa soar como mais conformada, centrada em focar na continuidade de seus dias e dedicada à educação de sua filha, na frase seguinte ela já pode estar completamente tomada por dor e culpa e seus pensamentos saem brutais e cheios de verborragias.

O sábado da morte de André de repente deixa de ser um sábado qualquer, e os outros sábados subsequentes na vida de Ana, Madalena e Catarina, passa a carregar esse estigma. “Faz mais de nove anos que estou presa dentro daquela meia hora”. Para além do tema da morte e do luto, que consequentemente nos levam a pensar em possibilidades de superação, o livro é também uma obra sobre mulheres e vivências femininas, onde até mesmo uma experiência universal como a morte e o luto são impactadas pela singularidade do que é ser mulher.