Sobre o que não falamos da Ana Cristina Braga Martes (Editora 34, 2023) é um romance ambientado nos anos 70 e que acompanha uma garota, pré-adolescente, aprendendo a ler os significados do silêncio de sua casa, de seus avós e da comunidade em que vive. A jovem não conhece a história dos próprios pais e no decorrer da narrativa vamos descobrindo juntamente com ela que essa quase “não existência” de seus pais está ligada à repressão imposta pela ditadura militar brasileira. É uma obra que perpassa a história política do nosso país, além de temas como injustiça, memória, identidade, amadurecimento, desigualdades.


O trabalho com o silêncio alcança diversas camadas, pois ao embrenhar pelo silêncio imposto pela ditadura e pela violência política, um fio de novelo é desvelado e mostra como a negação de direitos fundamentais descortina outros silêncios, como os impostos por questões culturais, religiosas, morais, de gênero e raça.

A escritora Ana Cristina Braga Martes também é socióloga, então percebemos em seu texto uma destreza ao nos localizar em um contexto histórico e político bastante específico. Com inteligência e respeito aos fatos, a autora constroi uma obra literária que se torna uma voz ressonante sobre a importância da democracia para manutenção dos direitos coletivos e individuais. Tudo isso ambientado em uma comunidade que é quase um mini Brasil com todos os seus desafios sociais.

O silêncio da história é algo tão pungente que ele se torna quase um personagem. O leitor sente nos poros o peso da falta de respostas e a forma como a autora descreve as ações das personagens, como se movimentam no espaço da casa e os momentos de interação, nos colocam intimamente ligados ao silêncio calculado vivido por aquela família.

Eu tinha certeza de que, se existia uma regra de ouro na casa, era esta: não interromper o silêncio do outro. E isso também valia para mim.

Além dessa anatomia do silêncio, o texto utiliza de outras alternativas e metáforas, que além de ilustrar as consequências da opressão da ditadura, também dizem sobre o amadurecimento e o florescer de uma adolescente. O questionamento, a dúvida, a investigação aparecem sim como ações fundamentais para entender e combater um cenário de opressão, mas também como ações inerentes a um olhar juvenil sobre o mundo e a nossa protagonista precisa descortinar sua história para poder crescer.

A personagem sofre de reumatismo e, por vezes, seus episódios de dor a impedem de colocar os pés no chão, o que funciona como uma metáfora genial para as descobertas que ela irá fazer sobre o destino de seus pais durante a trama.

Disso eu nunca me esqueci. No muro em frente à escola uma frase que eu li em voz alta, caprichando como um adulto, igual à voz da televisão: ABAIXO A DITADURA. Por que você falou desse jeito?, minha avó perguntou. Acho que é porque está escrito em vermelho e em letra de forma, respondi. Está vendo? Estou sim.
“Sobre o que não falamos” é quase um manifesto sobre a importância das histórias, da memória e da construção da identidade. É um romance de formação, que ao colocar a protagonista diante de um vazio, ao mesmo tempo vai nutrindo-a de uma espécie de força e curiosidade sobre as coisas. A partir daí se desdobram as passagens mais bonitas da obra, onde a menina começa a entender melhor os fatos a sua volta através do diálogo com pessoas chaves e a investigação do significado das palavras.

Ela passa a acessar fragmentos de sua história e a construir narrativa através da descoberta das palavras e o acesso a dicionários será um ponto de virada em sua investigação sobre o contexto em que vive. Através do dicionário ela encontrará significado para palavras que se encontravam nos muros, mas que não se ouvia qualquer rumor saindo da boca das pessoas.

No muro em frente à escola, notei duas novas pichações: VIVA OS MILITARES e MORTE AOS COMUNISTAS. Palavras escritas assim ficavam me chuchando, e estas falavam de morte. Comunista, a professora tinha dito essa palavra na casa dela. Militares, botas, coturno, homens fardados que andam a cavalo, soldados segurando cães policiais atentos e farejadores, isso tudo eu já tinha visto, mas não me lembrava bem, era muito pequena. Palavras proibidas, ameaças de morte, militares e comunistas, palavras que não se desgrudam, quanta coisa aparece sempre junta e a gente nem percebe.

“Sobre o que não falamos” é uma obra com inúmeros significados, muitos segredos e poucas respostas. É impossível ler a obra sem fazer a ligação do livro, que fala dos anos 1970 com o contexto histórico atual, onde o Brasil e o mundo está percebendo como a democracia é algo que precisa estar sempre em vigilância.