Essa coisa viva da Maria Esther Maciel (Editora Todavia, 2024) é um romance intenso e intimista que devassa a relação entre mãe e filha. Em meados de 2020, Ana Luiza recebe a notícia da morte súbita de sua mãe e com a distância física, não consegue chegar a tempo para o velório. Um ano depois, como uma forma de se despedir e fazer um acerto de contas com seu passado e consigo mesma, a narradora inicia a escrita de uma carta endereçada a sua mãe Matilde, onde relata detalhes de uma relação muito diferente do que o senso comum prega sobre como deve ser uma relação entre mãe e filha. Nos deparamos com um relato cheio de dores escondidas, pequenas violências e as consequências que uma relação quebrada pode gerar ao longo dos anos, uma vez que somos formados pelos laços que nos moldam.
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O livro é uma verdadeira sessão de terapia. Sem se preocupar com uma ordem cronológica, a personagem segue um fluxo de pensamento comandado pelo que a lembrança manda e ela obedece. À medida que vai relembrando episódios de convívio com sua mãe, vai tecendo uma rede de memórias que intercalam suas vivências infantis, da adolescência e da vida adulta. Ana Luiza se arma também de detalhes de sua vida que chegaram a seu conhecimento através do relato de outros familiares e de sua própria mãe. Podemos perceber em sua carta, toda a dor e ressentimento que guarda de uma mãe que nunca permitiu que ela ocupasse verdadeiramente o lugar de filha.
Ontem fez um ano que você morreu. Tentei chorar, mas não consegui. Apenas me encerrei numa indistinta e vaga tristeza, como se tomada por uma dor antiga, dessas que trazemos no corpo por muitos anos, sem sabermos exatamente de onde vêm. A noite que se seguiu pareceu interminável. Retomei, sem de fato prosseguir, a leitura de um livro iniciada na noite anterior e depois vasculhei as notícias sobre a pandemia no celular, temendo pela impossibilidade de voltar a ter a vida que, cuidadosamente, planejei para mim desde o momento em que você partiu. Que história existirá para minha vida depois que o mundo deixar de acabar?
Apesar de ser um livro que tem a morte como ponto de partida, o título “Essa coisa viva” nos faz pensar sobre como dores e traumas são coisas tão pungentes dentro de nós, que possuem uma espécie de vitalidade. Ana Luiza, já adulta, bem sucedida e a muitos quilômetros de sua cidade de origem, olha para seu passado e é nítido que todas as suas feridas continuam abertas. O desconforto da obra é essa coisa viva, a tristeza é essa coisa viva, um certo desprezo é essa coisa viva, o sentimento de culpa é essa coisa viva.
Se lhe conto essas coisas, é para trazer um pouco de leveza para esta carta que não é bem uma carta e para aliviar o incômodo que ela está me causando. Agora que a iniciei, preciso ir até o fim, custe o que custar. Para isso, entrego-me ao ritmo e às escolhas da memória, que filtra tudo de uma maneira inacreditável. Saiba que dentro de mim existe uma gaveta cheia de restos deixados pelo nosso desconjuntado convívio. O problema é que, ao recolhê-los, as coisas que se impõem com mais força são as que eu preferia ter rasurado de nossa história.
Em passagens fortes e que podem sensibilizar a maioria dos leitores, vemos uma filha que durante muito tempo lutou por um pouco de afeto. A narradora chega a dizer que um dos únicos momentos que se sentia amada pela sua mãe, era quando estava doente, e que por isso, silenciosamente, desejava ficar doente para ser tratada com um pouco de carinho. Assim como também relata que o lado bom de ter enfrentado uma infestação de piolhos na infância, era que assim podia colocar sua cabeça no colo da mãe, enquanto ela passava o pente fino para procurar lêndeas e puxá-las com as unhas.
Em “Essa coisa viva” conhecemos apenas um lado da história. Então cabe ao leitor realizar suas próprias reflexões e inferências em relação a quem era essa mãe e o porque de a maternidade nunca ter suscitado o ímpeto de amor e cuidado que se espera. Apenas sabemos que Matilde é uma mulher triste e amargurada com a própria vida. No fim, fica a curiosidade sobre a história dessa mãe, onde com certeza encontraríamos algumas respostas sobre a construção da sua subjetividade.
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