Uma mulher da Annie Ernaux (Editora Fósforo, 2024) nos apresenta um relato realista, corajoso e emocional onde a autora se debruça sobre a história de vida de sua mãe. A narrativa parte do dia de sua morte, 7 de abril, e viaja em um tempo que não tem interesse na cronologia, mas nas memórias que sempre ajudaram a traçar a personalidade de sua mãe. Annie diz ter a sensação de escrever para ela mesma poder trazer sua mãe ao mundo. Esse parto as avessas e induzido pela literatura, recoloca sua mãe no mundo, olhando para as incoerências, dores e afetos que a constituíam enquanto mãe e mulher.


Meu projeto é de natureza literária, pois trata de buscar uma verdade sobre a minha mãe que só pode ser alcançada por meio das palavras. (Ou seja, nem as fotos, nem minhas lembranças, nem os testemunhos da família podem me dar essa verdade.) Mas quero permanecer, de certa forma, abaixo da literatura.

Além de ser a maneira com que Annie Ernaux encontrou de lidar com as nuances do luto e com a ideia de que nunca mais veria sua mãe – que ela sacramenta com a frase “minha mãe nunca mais estará em lugar nenhum do mundo” - sua escrita consegue também estabelecer um distanciamento seguro do sentimentalismo por si só, pois existe sempre uma procura por uma verdade que escancara contornos sociais. Ao falar sobre sua mãe, Annie sabe que está falando sobre as vivências das mulheres operárias da França de meados dos anos 20, sobre violência política e opressão de gênero.

Annie Ernaux se dedica aos pequenos e grandes detalhes para desenhar a história de sua mãe. Ela conta não só sobre os momentos dos afetos, como também sobre aqueles onde só cabia conflito e um rechaçamento natural de tudo que a figura materna representa. Annie olha para falas, gestos e atitudes de sua mãe, e ao fazê-lo, agora através da névoa do luto e do amadurecimento, é que ela enxerga sua mãe através da subjetividade.

Tento não considerar a violência, os transbordamentos afetivos, as censuras de minha mãe apenas como traços pessoais de caráter, mas situá-los também em sua história e sua condição social. Essa forma de escrever que me parece ir na direção da verdade me ajuda a sair da solidão e da confusão produzidas pela lembrança individual, pois descubro um significado mais amplo. Mesmo assim sinto que alguma coisa em mim resiste e gostaria de conservar, de minha mãe, imagens puramente afetivas, calor ou lágrimas, sem lhes dar um sentido.

Ler as obras de Annie Ernaux é sempre algo inesperado e imersivo. A forma como ela apresenta e defende a própria escrita e as suas decisões narrativas, nos leva para um lugar onde não cabe espaço para indagações sobre o que é ficção e o que é realidade, pois Annie se coloca completamente nua diante de seus leitores. “O que eu espero escrever de mais exato se situa, sem dúvida, na articulação entre o familiar e o social, o mito e a história”