Caminhávamos pela beira da Lolita Campani Beretta (Editora Aboio, 2023) é uma obra singular. Com uma prosa poética muito bem escrita, a autora nos leva por um passeio pelas bordas e pelas beiras. Descobrimos que, mesmo diante das pequenas coisas ou daquilo que de tão usual e corriqueiro, quase se tornara invisível, existe um universo. Ao ler o texto de Lolita, lembrei de uma frase da escritora Marina Colasanti que diz: “as mulheres fazem astronomia olhando uma migalha de pão”.


Na primeira parte do livro, é exatamente isso que Lolita Campani faz, só que olhando para baixo. Toda a primeira parte do livro é dedicada aos pés. A autora consegue, ao longo de várias páginas, olhar para os nossos pés, uma de nossas beiras fundamentais e traçar um verdadeiro histórico poético, social, sexual e quase científico do lugar em que os pés nos plantam.

Com sua escrita fronteiriça, que passeia pela poesia e pela prosa, o livro também demonstra o caráter fronteiriço da literatura de caminhar pela beira de qualquer assunto, de explorar qualquer cenário e sentimento. Tudo isso emerge na obra, aliado às características da escrita de Lolita, que propõe a exaltação das possiblidades que a escrita guarda em si em relação à observação da vida.

em uma mesma família, os pés de diferentes pessoas podem se assemelhar a ponto de ouvir dizer, com alguma admiração, “é igualzinho ao de seu pai!”. o mesmo dificilmente será observado sobre cotovelos, ainda que idênticos.
por dificuldades logísticas e por desinteresse, pés semelhantes de pessoas que se desconhecem não costumam ser identificados e, diferente de rostos, se cruzam em avenidas sem que isso seja jamais descoberto.
Durante a leitura eu me perguntava o tempo todo: “Como é possível ter tanto a falar sobre os pés?” É impressionante a maneira minuciosa com que Lolita fala sobre aspectos que vão desde o uso dos pés, algo tão automático para nós e que não pensamos sobre, como também sobre outras abordagens que são culturais, gestuais e simbólicas. Assim como os pés, que nos levam adiante, o livro de Lolita também nos convida a ultrapassar algumas fronteiras.

embora a alternância dos pés tenha como principal objetivo a locomoção, ao movimentar um pé após o outro em passos lentos, espera-se, principalmente, circular por espaços sem que outras pessoas o notem. enquanto a caminhada padrão costuma ter êxito garantido, sua performance vagarosa com o objetivo de invisibilidade nem sempre conta com a mesma sorte.
Terminei a leitura com a conclusão de que, olhando pelos olhos da literatura, o espanto não deve ser pelo nível de exploração de um tema - deve ser o contrário - pois a literatura nos convida e nos dá instrumentos para conseguir olhar além, seja partindo das beiradas, seja partindo do âmago.