A casa comum do Kaio Carmona (Quixote Do, 2020), primeiro volume da Coleção Desassossego, é um livro visceral que acompanha um dia na vida de um casal que está se separando. O livro se divide em duas partes: ela e ele. Enquanto ‘ela’ deixa um bilhete em casa, sacramentando o fim do relacionamento e em seguida vai de encontro à rua para enfrentar o luto do fim, ‘ele’ se vê diante de um bilhete e uma casa vazia, onde cada canto e cada móvel conta uma história a dois. O texto de Carmona aposta em uma prosa poética que nos remete aos saraus, onde o próprio texto quase pede uma leitura em voz alta.


Ela caminha pelo bairro e observa tudo à sua volta enquanto pensa sobre o fim do seu amor. Entre um passante e outro, uma esquina e outra, ela encontra a si mesma e encara de frente todos os motivos do seu amor e do seu desamor.

Ele, diante do bilhete tão definitivo, da surpresa da decisão pelo término e do desejo de compreender a situação, entra em um intenso estado de reflexão sobre o amor. Se vê diante de um fim que contrasta com a minúcia da organização da casa, exceto por uma cadeira, puxada de lado.
Quando cheguei, apenas uma cadeira fora do lugar, como que me convidando a sentar. como que avisando – você não vai aguentar, é melhor desabar o seu desespero aqui, com decência, o chão vai te fazer ainda mais patético.

Assim como acontece em todo fim, os dois precisam enfrentar a dúvida, a dor e o medo ao mesmo tempo que revisitam a própria história. São arrebatados por uma explosão de pensamentos e sentimentos que rende reflexões profundas e muito bonitas sobre o amor. A narrativa transborda a nossa frente como um fluxo de pensamento e somos transportados para as questões filosóficas e universais que versam sobre o amor.

Mas o amor tem suas garras e mora nas sombras, mesmo que o pintemos de ovelha passiva e branca e iluminada em pasto aberto. (sonho uma poeta que um dia colocará o artigo feminino no amor.) a besta-fera amor. a fera. Não consegui amansar o amor. do alto de minha cadeira, acompanhei em horror o amor devorar meus pés, arrancar um a um os meus dedos. senti suas finas unhas espetarem meu olho. afônica, deixei que mastigasse minha orelha, decepasse minha língua. deixei que me devorasse. e quanto mais entranhava suas garras em mim mais oferecia meu peito.
A obra, além de nos convidar a pensar sobre o que é o amor e sua subjetividade, acaba também servindo como um despertar para o que é a ilusão do amor e como entre um amor que nasce e um amor que se vai, mora toda a nossa história enquanto sujeitos. Entre uma frase e outra, uma reflexão e outra, estabelecemos proximidade com algumas das facetas do amor que o livro apresenta, seja diante do encantamento dos começos ou das dores do fim.