Degenerado da Chloé Cruchaudet (Editora Nemo, 2021) é uma graphic novel inspirada no livro “La garçonne et l’assassin” de Fabrice Virgili e Daniele Voldman. Conta a história real de Paul e Louise, dois jovens que se apaixonam, se casam e logo são separados pelo início da Primeira Guerra Mundial. Paul é enviado para o front e depara com os horrores da guerra. Após ser ferido e ir para um hospital de campanha, sua única certeza é o desejo de não retornar para o campo de batalha. Ele decide se tornar um desertor.
Após fugir da guerra, Paul volta para a cidade de Paris e reencontra sua esposa. Passa a viver os dias escondido em um hotel barato e recebendo visitas esporádicas de Louise. Cansado do enclausuramento, um dia, meio de brincadeira, Paul experimenta as vestes de Louise e sai para as ruas disfarçado pelas roupas e pela penumbra da noite. Não sendo descoberto, ele se vê diante da possibilidade de assumir uma nova identidade. Paul se torna Suzanne, algo que mudará para sempre sua vida.
Enquanto lida com traumas de guerra, Paul vai aprendendo como se tornar Suzanne. Por vezes, a situação parece uma grande brincadeira para os dois, como nos frames em que Louise o ensina como uma mulher se porta e quais são seus gestos, enquanto estão sentados em um café. Com o decorrer dos dias, Paul vai ficando cada vez mais confortável na pele de Suzanne e todo o processo de se travestir vai se transformando em prazer e descoberta.
Além de nos transportar para uma época vibrante da história, onde o mundo tentava se reestabelecer no pós-guerra, Chloé Cruchaudet também adentra em temáticas sensíveis e muito importantes. É como se o personagem principal trocasse uma guerra pela outra. Paul foge do confronto armado, para adentrar em um confronto com a própria subjetividade e sexualidade. Paul/Suzanne que até então trocara de identidade para se esconder, acabou se encontrando em um processo de vivência latente da própria identidade e das liberdades individuais.
A história de Paul/Suzanne é algo admirável, principalmente ao nos transportarmos para a época em que os eventos aconteceram. Na Paris de meados de 1910, desafiar as ideias de gênero e sexualidade era algo que podia ser considerado um ultraje social e um crime. De forma impressionante, Paul conseguiu viver como uma mulher por dez anos, até que os soldados desertores foram anistiados.
Uma grande dicotomia da história e que pode suscitar discussões interessantes, é a forma como Paul consegue encontrar sensação de liberdade, apenas quando passa a viver como uma mulher. Isso pode soar um pouco incompreensível quando pensamos nas condições que as mulheres viviam na época e ao mesmo tempo nos dá uma ideia de como a identidade de gênero está ligada a questões fundantes. As mulheres não eram donas de seus corpos e de seus destinos, mas foi só quando reivindicou pra si uma vivência de mulher que Suzanne passou a se sentir completa e com a coragem de experimentar a própria sexualidade.
Observe os gestos... uma mulher deve ser discreta, contida. Você manuseia os objetos como se fossem frágeis. Se move devagar, como se estivesse dentro d’água. Age como se estivesse com frio. Descansa o copo sem fazer barulho.
O traço de Chloé Cruchaudet é genial e eleva a obra a um outro patamar. Suas cores aparecem sempre em preto e cinza e o vermelho, inicialmente, começa a ser utilizado apenas nas vestes de Louise. À medida que Paul vai se transformando em Suzanne, o vermelho vai abandonado as roupas de Louise e transportando diretamente para Suzanne. Essa utilização da cor dá muitas dicas sobre o rumo que a história irá tomar.
Com "Degenerado", Chloé Cruchaudet foi contemplada com o Prêmio da edição 2014 do Festival de Angoulême na categoria Melhor Álbum e com o Grande Prêmio da Associação de críticos e jornalistas de quadrinhos francesa, em 2013.
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