Quem matou meu pai do Édouard Louis (Editora Todavia, 2023) é um relato comovente e violento, onde o autor analisa a relação com o próprio pai através da penumbra da desigualdade social, da pobreza, da homofobia e de uma política que mata. Édouard Louis não deixa de lado suas mágoas em relação ao amor que esperava receber do pai, mas consegue ir além ao discutir sobre a influência do meio para a formação da subjetividade de um homem que sempre precisou lidar com a falta. Uma falta que aos poucos foi se transformando em silêncio e violência.


O livro é escrito em primeira pessoa e como se fosse uma carta endereçada ao pai. A narrativa começa após uma visita, feita depois de alguns anos de distanciamento, e após Édouard se deparar com um homem debilitado por conta de anos de serviço pesado e diversos tipos de privações causadas pela pobreza. O autor constrói uma espécie de manifesto político, que mostra como funciona o jogo da exploração dos mais pobres e como existe um mecanismo de escravização de corpos e mentes, onde pessoas exploradas são convencidas de que suas dificuldades e necessidades são “coisas da vida”. O mesmo mecanismo que conseguiu fazer com que seu pai, um operário, votasse em um candidato da extrema-direita.

Você não estava ali. Não estava nem mesmo boquiaberto porque perdera o luxo do espanto e do horror, nada mais era inesperado porque você não esperava mais nada, nada mais era violento porque você não chamava a violência de violência, chamava de vida, você não a chamava, ela estava ali, existia.
Édouard Louis constrói uma voz literária imponente ao utilizar da autobiografia e da escrita poética para narrar suas memórias. Em meados dos anos 90 e início dos anos 2000, o autor levou uma vida pobre e cheia de privações ao lado da família. Seu pai sempre foi operário e sua mãe uma dona de casa. Viveram no norte da França em uma época de graves crises políticas, portanto, nos relatos de Édouard, vemos claramente o impacto da desigualdade social na vida da classe operária francesa.

Na obra de Louis estabelecemos contato com alguns tipos de ausências. Temos a ausência clássica do diálogo entre homens, fato que é impulsionado pelo machismo, pela homofobia e que, por vezes, esbarra na violência. No caso de Édouard soma-se o fato de que o autor é um homem gay que precisou enfrentar o preconceito muito antes que a sua sexualidade fosse uma questão para ele mesmo. Era um menino gay sendo criado por um homem que foi convencido pela estrutura social de que abandonar a escola o mais rápido possível era uma questão de masculinidade.

Durante toda a minha infância ansiei por sua ausência. Voltava da escola no fim da tarde, lá pelas cinco horas. Quando me aproximava de casa, sabia que se o seu carro não estivesse estacionado na porta queria dizer que você tinha ido ao bar ou à casa do seu irmão e que voltaria tarde, talvez no início da madrugada. Se eu não via seu carro na calçada na frente de casa, sabia que iríamos comer sem você, que minha mãe acabaria dando de ombros e nos servindo o jantar e que eu só o veria no dia seguinte. Todos os dias, quando eu me aproximava da nossa rua, pensava no seu carro e implorava em silêncio: faça com que ele não esteja lá, faça com que ele não esteja lá, faça com que ele não esteja lá.

 


Desde muito cedo, Édouard precisou lidar com a ambivalência, com a ironia de ao mesmo tempo em que ansiava pelo amor do pai, também desejava distância de sua frieza e de seu silêncio. Quando pensamos sobre isso, o livro ganha um significado maior, pois estamos diante da sede de um filho por respostas e ele logo percebe que elas estavam todas ali. O autor parte de algo particular para descobrir que tudo era de instância cultural e coletiva.

Um dia, escrevi a seu respeito num caderno: escrever a história da vida dele é escrever a história da minha ausência.
Existe uma outra ausência na obra que é a ausência política. Édouard Louis é brilhante ao criar um manifesto político que descreve a forma sutil como a má política faz a manutenção dos pobres e da pobreza em um país. Ele faz isso enquanto conta a história de vida de seu pai, que sempre precisou trabalhar muito para conquistar pouco, que sempre precisou lutar para viver com o mínimo de dignidade.

Gostaria de tentar formular uma coisa: Quando penso nisso hoje, tenho a sensação de que a sua existência foi, apesar de você, e contra você, uma existência negativa. Você não teve dinheiro, não pôde estudar, não pôde viajar, não pôde realizar seus sonhos. Há na linguagem quase apenas negações para contar sua vida.
Édouard olha para seu pai, com a saúde frágil por conta dos anos de trabalho e ainda assim sem direito a uma assistência digna e se permite perdoar o homem que ele se tornou. Ele percebeu que estava olhando também para o povo pobre francês. O autor relata uma ocasião em que o pai ficou impossibilitado de trabalhar por conta de um acidente de trabalho e cita as inúmeras reformas e resoluções governamentais que foram diminuindo e até mesmo retirando os poucos auxílios que os trabalhadores tinham. Seu pai, com um problema sério de coluna, precisou voltar a trabalhar, encurvado, varrendo rua, para garantir sua sobrevivência.
Agosto de 2017 – o governo de Emmanuel Macron tira cinco euros por mês dos franceses mais necessitados, retém cinco euros por mês dos auxílios sociais que permitem aos mais pobre na França encontrar moradia e pagar aluguel. No mesmo dia, ou quase, não importa, anuncia uma redução de impostos para as pessoas mais ricas da França. Considera que os pobres são ricos demais e que os ricos não são ricos o bastante. O governo Macron determina que cinco euros não é nada. Eles não sabem. Dizem essas frases criminosas porque não sabem. Emmanuel Macron tira a comida da sua boca.

Édouard tem a coragem de dar nome aos bois e deixar registrado para a posteridade os nomes dos poderosos responsáveis pela morte de seu pai, como se essa fosse pelo menos uma forma de fazer alguma justiça.

Hollandre, Valls, El Khomri, Hirsch, Sarkozy, Macron, Bertrand, Chirac. A história do seu sofrimento tem nomes. A história da sua vida é a história dessas pessoas que se sucederam para abatê-lo. A história do seu corpo é a história desses nomes que se sucederam para destruí-lo. A história do seu corpo acusa a história política.

O posicionamento político de Édouard é doloroso e também serve como um alerta. Ao ver os seus e sua comunidade em um ciclo sem fim de abusos, opressões e limitações, o autor deixa um questionamento sobre o que a política representa para os políticos e como estamos diante de uma sucessão de nomes que entram e saem do poder, sem fazer uma mudança realmente significativa para mudar a ordem das coisas. Édouard critica o posicionamento de governos ditos de esquerda, mas que não conhecem sobre quem tanto falam.

Os poderosos podem reclamar de um governo de esquerda, podem reclamar de um governo de direita, mas um governo nunca lhes causa problemas digestivos, um governo nunca lhes tritura as costas, um governo nunca os arrasta para a praia. A política não muda a vida deles, ou muda muito pouco. Isto também é estranho, eles fazem a política, mas a política não tem quase nenhum efeito em suas vidas. Para os poderosos, na maior parte do tempo, a política é uma questão estética: uma forma de pensar, uma forma de ver o mundo, de construir sua persona. Para nós, significa viver ou morrer.
Édouard Louis mostra-se a cada livro como uma pessoa comprometida com as próprias convicções. Aposta no confronto com as ideias pré-estabelecidas, na provocação da classe dominante política e dos poderosos como uma das maneiras mais eficazes de promover alguma mudança significativa. E quando parte de uma história tão próxima e tão real como do próprio pai, da própria família e de uma comunidade da qual fez parte, seus relatos ganham mais corpo, principalmente ao mostrar que temas  como política e justiça social não estão desassociados das noções de sobrevivência, amor e ódio.