Lutas e metamorfoses de uma mulher do Édouard Louis (Editora Todavia, 2023) é uma obra sensível, onde o autor olha para a história de opressão vivida por sua mãe e descobre uma mulher que era “livre antes de seu nascimento”. Utilizando de uma linguagem poética e ao mesmo tempo realista, Édouard faz uma espécie de ensaio sobre o efeito das condições sociais (especificamente da pobreza) e do machismo na vida de uma mulher.


Édouard Louis começa o livro narrando um fato que foi um dos pontos de partida para que começasse a enxergar a própria mãe para além da maternidade. O autor encontrou uma foto, que não sabe exatamente como chegou em suas mãos, e que retrata sua mãe aos vinte anos de idade.

Ver essa foto me lembrou que esses vinte anos de vida destruídos não foram uma coisa natural, aconteceram pela ação de forças externas a ela – a sociedade, a masculinidade, meu pai -, e que, portanto, as coisas poderiam ter sido diferentes.
Assim como faz no livro “Quem matou meu pai”, onde nomeia todos os fatores e inclusive as pessoas responsáveis, direta ou indiretamente, pela sua degradação, em “Lutas e metamorfoses de uma mulher”, Édouard segue pelo mesmo caminho, mas aqui, ele também se coloca como um dos responsáveis pela opressão vivida por sua mãe.

Chorei diante dessa imagem porque fui, sem querer, ou talvez, melhor dizendo, com ela e às vezes contra ela, um dos atores dessa destruição.

A obra de Louis e sua aposta pelo tom autobiográfico, transporta os leitores para modos diferentes de analisar a vida e a realidade, e que no fim das contas nada mais são do que o descortinar de questões que estão o tempo todo diante de nós, mas que são invisibilizadas por convenções sociais e interesses mais.

Sua literatura, que vem sendo prestigiada em todo o mundo, se torna grandiosa exatamente por escancarar os fios que sustentam a nossa sociedade e o modo como ela funcionam hoje. E ao fazer isso, partindo das questões familiares e da simples analise de uma foto, o autor transforma suas obras em verdadeiros manifestos políticos.

Disseram-me que a literatura nunca deveria tentar explicar a realidade, apenas ilustrá-la, e escrevo para explicar e entender a vida dela. Disseram-me que a literatura nunca deveria se repetir, e tudo que que eu quero é escrever a mesma história, de novo e de novo, voltar a ela até que revele fragmentos da sua verdade, cavar um buraco atrás do outro até o ponto em que o que está escondido comece a ressumar.
Enquanto conta a história de sua mãe, Édouard reflete sobre uma sociedade que funciona por outra ordem quando se trata da vida de mulheres pobres. Vai nos mostrando, que para sua mãe e uma infinidade de mulheres, o que para muitos significa apenas uma mulher “cumprindo seu papel” dentro do seio familiar, para elas pode significar frustração, falta de perspectiva e violência.

Ela não realizou seus sonhos. Não conseguiu consertar o que via como a sucessão de acidentes que constituía sua vida. Não conseguiu encontrar uma maneira de viajar no tempo.

 

Após lidar com alguns traumas, vergonhas e desentendimentos da relação com a sua mãe, e de um tempo de afastamento necessário, é que Édouard Louis começou a entender o contexto em que ela vivia. Depois de ver sua mãe com vinte anos de idade em uma foto, com um semblante de quem sonhava com um futuro, é que ele passou a vê-la como alguém com uma história e como alguém que foi privada de várias outras possibilidade de ser e estar no mundo. Em um trecho muito bonito da obra, Édouard diz que aprendeu a “ver a violência ao se distanciar dela, e a via em todos os lugares”.

Além de todas as questões sociais que permeavam as malezas vividas pela sua mãe, Édouard relata o quanto a postura de seu pai, durante os vários anos de casamento, a colocaram em um clico de sofrimento e humilhação, onde precisava se submeter a situações e violências que ainda hoje são legitimadas pelo conservadorismo e pelo machismo.

O ponto de virada da obra, que é algo já explícito no título do livro, está no momento em que sua mãe decide romper com o ciclo de violência que vivia, algo que se inicia com a separação do marido. Contrariando a toda uma perspectiva que foi sendo construída durante sua vida, Monica inicia seu processo de metamorfose.

Para algumas pessoas, a identidade feminina é claramente uma identidade opressiva; para ela, tornar-se mulher foi uma conquista.