Na intimidade do silêncio da Cintia Brasileiro (Editora Aboio, 2023) é um romance emocionante. Somos convidados a olhar para o óbvio, para o cotidiano, para o ciclo da vida, e principalmente para o silêncio, através de um texto poético e nada previsível. É um romance de formação, onde o fluxo de pensamento da protagonista e a forma como lida com as lembranças serão os condutores da narrativa. Assim como funciona o nosso próprio fluxo de pensamento, que nos leva de um ponto a outro da nossa história sem aviso prévio, alguns parágrafos de “Na intimidade do silêncio” também são construídos assim. Por conta da ótima escrita da autora, nos acostumamos rapidamente a seu jogo literário e conseguimos nos guiar pela história de Lia como se tivéssemos um mapa nas mãos.


O livro trata de temas delicados, como a perda dos pais ainda na infância, os desafios da construção da identidade quando perdemos nossa principal referência e a companhia constante do estigma violento de uma doença. Nossa narradora é mulher adulta, que olha para trás e consegue se colocar no lugar de alguém que analisa as próprias vivências, sem deixar de lado o que a sua versão infantil entendia do processo e sentiu perante cada situação.

Mãe, meu nariz sangrou na escola. Parecia que uma bomba tinha caído na sala de aula. Senti no ar o pavor que tomou conta de todos. Dentro de mim, tudo fervia. A professora congelou, não queria se aproximar e não sabia o que fazer com o lenço que tremia nas mãos dela. Eu também não sabia. Ninguém queria tocar em mim, mãe. O ventilador estava quebrado. Lá fora, um sol de rachar mamona, aí meu sangue escorreu pela minha boca, carteira, manchou meu uniforme e gotejou até o chão. Na sala, trinta crianças e a professora, e eu estava só. Peguei o lenço da mão dela, mãe. Tampei meu nariz, saí correndo em direção ao banheiro e desejei nunca mais ter que voltar.
Em vários capítulos nos deparamos com a forma fluida e não-linear das lembranças de Lia, como elas funcionam como estratégias de construção da personagem e ponto de retorno a um passado recente que são gatilhos para lembranças traumáticas e também afetuosas. Um exemplo é o capítulo “Meu naco de céu”, onde Lia está participando da festa de aniversário de um de seus alunos. Nesse ponto, somos automaticamente transportados não para uma de suas experiências, mas para algo que sempre sonhou e nunca teve.

Ela nem podia imaginar o quanto eu gosto de festas infantis, principalmente do momento de cantar os parabéns. Quando todos se reúnem em volta da mesa do bolo com doces, eu me permito apertar um botão-ficção e parar o tempo. Então, por alguns instantes, posso ocupar o lugar do aniversariante.
A história de vida de Lia é repleta de dor, mas também de muita luta e afeto. A dor se apresenta na maneira como seus pais se foram e como esse silêncio afetou a vida da personagem. A luta se desenha a partir de sua relação com as artes, seu olhar sincero para a própria história e sua busca consciente pelos próprios sonhos, como a mudança do interior do estado para estudar na Europa. O afeto é algo que transborda em toda a obra e garantem um dos momentos mais bonitos do livro. Lia se torna órfã de pai e mãe, mas existem algumas presenças em sua vida que são a personificação do amor.

Ali, na recepção do hospital, percebo que muitas famílias, de todas as formas e tamanhos, estão reunidas. Há mais ou menos duas décadas, a minha se resume a nós três: vovô, nossa vizinha e eu.
“Na intimidade do silêncio”, curiosamente é o primeiro romance de Cintia Brasileiro, e digo isso pela destreza com que ela narra a história. Seu texto é muito bem construído e chama atenção pela inteligência com que ela trabalha com a simultaneidade entre passado e presente. Para além disso, chama atenção a própria estrutura e diagramação de alguns trechos, que utilizam da poesia visual.



A obra versa sobre a descoberta em suas diversas facetas. Lia precisa se descobrir enquanto sujeito, enquanto mulher negra, enquanto artista, e o mais importante: descobrir quem é a Lia para além das tragédias que assolaram sua vida.