Sem os dentes da frente do André Balbo (Editora Aboio, 2023) é um livro de contos que já chama atenção pelo seu título e aposta em histórias que nos pegam de jeito por conta de toda a sua estranheza. O grande lance do livro está na sua escrita, que mescla o real e o fantástico para dar vazão a sentimentos e situações que revelam mais de si quando vistas pela lente do insólito e do improvável. Podemos dizer que o fio condutor dos contos são as diversas faces da falta, da ausência e do vazio, que aparecerão de formas diferentes e nada previsíveis.


O desaparecimento dos objetos do apartamento de uma mulher, uma chuva misteriosa sobre um cemitério à beira da privatização, uma descoberta tardia em um orfanato de meninas, a luta pela sobrevivência de uma nova espécie, uma partida de dominó em Araraquara, o segredo de um casal de búfalos, os dias de um dragão na praça de uma pequena cidade, o testemunho de um anão de jardim, as relações entre divórcio, dentes e autoritarismo.
André Balbo conseguiu transformar o sentido de falta e de ausência em uma imagem ao evocar uma boca sem os dentes da frente. Essa imagem serve como ponto de partida, como uma brecha para entrarmos de cabeça na proposta do livro. As faltas que Balbo descreve a cada conto, são de coisas que deveriam estar ali e que por algum motivo não estão. Essa ausência, será a principal causa de uma série de acontecimentos definitivos para os personagens.

Os meus dois contos preferidos são o primeiro e o último. A história que abre o livro, chamada “Casa vazia”, é sem dúvida um dos melhores contos que li nos últimos anos. A gente vê ali uma materialização (ou talvez uma desmaterialização) da falta de tirar o fôlego do leitor. É tão bem escrito, que conforme os objetos vão sumindo da casa, senti algo muito diferente do que achei que sentiria.

Assim como a personagem do conto, fui sendo sugado pela apatia, pela indiferença e um conformismo diante daqueles sumiços. Primeiro porque somos tomados de uma curiosidade de saber até que instância irão os sumiços e também porque de cara, percebemos que eles são reflexos de uma perda maior, o que se confirma no fechamento da história.

Poderia ter sido uma pulseira, a aliança, um relógio de parede, o controle da TV, mas quis o destino que numa manhã ela acordasse no chão frio. O sumiço da cama não incomodou a dona do apartamento. As coisas sumiam mesmo. Além do mais, tinha passado o último mês dormindo quase sempre no sofá. Depois de duas ou três noites, já nem mais sentia o desconforto. Era pequena e cabia com folga nos três assentos, pegava uma manta aveludada e estava feita.
No último conto, chamado “Bruxismo”, veremos de forma mais forte uma ironia e um certo deboche que estavam presentes em todas as outras histórias. A essa altura do livro, já estamos preparados para deparar com a seguinte situação em que o personagem se encontra: “Laura, é sério que você quer acabar com sete anos de casamento só porque eu ranjo os dentes enquanto durmo”?

A partir daí a sucessão de situações absurdas que se seguem são memoráveis, onde ironia, sarcasmo e violência andam lado e lado para contar uma história que tem camadas bem profundas em relação à dinâmica dos relacionamentos amorosos. De forma alguma você conseguirá prever para onde o conto te levará.