O selvagem de David Almond e Dave McKean (Editora SM, 2014) é um livro infantojuvenil recomendável para todas as idades. Com uma narrativa bem escrita e inteligente, David trata de temas como medo, luto, tristeza, raiva e frustração. O autor mescla elementos do real e do fantástico, que funcionam como uma maneira de sublimar as angústias. “O selvagem” contém uma história dentro de outra história e essa dualidade se inicia quando Blue Baker decide escrever uma narrativa de ficção partindo de suas próprias vivências. Ele cria um personagem selvagem, violento, sanguinário e inicialmente sem filtros para as emoções. O selvagem passa a ser uma espécie de repositório de todas as frustrações de Blue.


Vocês não vão acreditar, mas é verdade. Escrevi uma história, chamada O selvagem, sobre um garoto que morava numa capela em ruínas, em Burgess Woods, e que acabou ganhando vida no mundo real. Eu a escrevi logo após a morte do meu pai. Na escola havia uma professora – a Sra. Molloy – que nos aconselhava e que costumava me tirar da sala, estimulando-me a pôr no papel meus pensamentos e sensações. Ela queria que eu elaborasse minha dor para poder “seguir adiante”. Por algum tempo até que tentei, mas aquilo me parecia meio idiota, fazendo com que me sentisse ainda pior. Certo dia, então, rasguei todas aquelas baboseiras que tinha escrito sobre mim mesmo, arrumei um caderno velho e comecei a escrever O selvagem, cuja primeira parte aqui está.
O livro, ainda que literário, assume um caráter reflexivo e psicanalítico conforme Blue embarca no processo de escrita. Ele utiliza o ato de escrever como um espelho, onde tudo aquilo que gostaria de dizer e fazer se torna possível. O Selvagem se torna uma maneira de Blue experimentar ser diferente. Se Blue sempre fora considerado um garoto amoroso e gentil, o Selvagem seria, literalmente, seu lado selvagem.

Depois de escrever tudo isso, eu me senti muito melhor. Foi fantástico ver Hopper pelos olhos do selvagem e escrever quão feio e idiota e horrível ele parecia. Era fantástico pensar que, se neste mundo havia realmente um selvagem daqueles, ele me ajudaria a dar um jeito no Hopper.


Logo escrever se torna algo cotidiano, necessário e onde o personagem encontra satisfação. Blue vai estabelecendo uma conexão interessante entre imaginação e realidade que impactará de forma definitiva sua vida e as questões que até então não sabia como lidar.

Toda a história é dividida em duas partes. Existem os capítulos que falam de um tempo presente, onde Blue, um pouco mais velho, fala sobre um outro momento de sua vida, onde escrevia a história do Selvagem. Entre esses capítulos são intercalados os textos da própria história do Selvagem. Um detalhe interessante é que com esse formato podemos perceber como os acontecimentos reais foram sublimados pela ficção/imaginação.

Outra estratégia interessante é que David Almond optou por deixar a escrita da história do Selvagem exatamente como se uma criança pequena o tivesse feito. Então esses trechos não se preocupam com gramática e nem com a escrita correta das palavras. Encontramos ali algumas palavras com erros muito característicos de uma criança que aprendeu a escrever recentemente. Curiosamente, isso contribui para uma sensação de veracidade com todo o contexto das duas partes do livro casadas.

“O selvagem” é uma boa indicação de leitura para tratar de temas delicados com crianças e jovens, sendo que tudo vem aliado a uma história que tem bons diálogos, um misto de aventura e reflexões que conversam diretamente com sentimentos que precisam ser elaborados, uma vez que farão parte da vida de qualquer pessoa.