Meu pai é um homem-pássaro com texto de David Almond e ilustrações de Polly Dunbar (Martins Fontes, 2010) foi o primeiro livro infantil escrito pelo autor que mais tarde seria agraciado com o prêmio Hans Christian Andersen e hoje é um dos escritores de literatura para a infância mais celebrados. A história utiliza de elementos fantásticos para tratar de temas como amor familiar, cuidado, alegria, tristeza, morte e fé – uma fé que não é necessariamente religiosa, mas voltada à nossa dedicação ao que acreditamos e mais ainda ao que queremos superar. O pai de Lizzie acreditava que conseguiria voar e essa era sua fé, sua forma de sublimar uma dor capaz de alterar a realidade.


David Almond inverte uma lógica a qual estamos muito acostumados, a de que os pais devem cuidar, proteger e amparar os filhos colocando a menina Lizzie nesse lugar. Pai e filha estão enfrentando um processo de luto. Jackie está lidando com a perda da esposa e Lizzie com a perda da mãe. Enquanto o pai mudou de personalidade e agora acredita ser um pássaro, Lizzie pegou para si a responsabilidade de proteger o pai. E muito mais que proteger, mas também apoiar até mesmo naquilo que ela não entende.

Essa troca de papéis ao mesmo tempo que deixa a narrativa um pouco inusitada e por vezes engraçada, também consegue demarcar a importância do cuidado. Ao ver uma filha cuidar do pai exatamente da forma que uma criança merece ser cuidada, conseguimos vislumbrar uma outra nuance da importância desse amor.

Uma manhã de primavera, na travessa Cotovia, 12. Os passarinhos piavam e assobiavam lá fora. O tráfego da cidade rugia e roncava. O despertador de Lizzie disparou: trrrrrrrrrrim. Ela pulou da cama, lavou o rosto, esfregou atrás das orelhas, escovou os dentes, penteou os cabelos, vestiu o uniforme, desceu a escada, encheu a chaleira, pôs a água para ferver, colocou o pão na torradeira, arrumou sobre a mesa dois pratos, duas canecas, duas facas e mais leite, manteiga e geleia, e depois foi até o pé da escada.

- Pai! – gritou a menina. – Pai!

Não houve resposta.

- Pai! Está na hora de levantar!

 


Os pássaros aparecem na obra como uma metáfora fundamental para embarcar no cotidiano da família e no universo que David Almond criou em volta dela. O fascínio do homem pelo voo se torna um fascínio que mescla liberdade, libertação e uma pitada de fuga. O simbolismo dos pássaros representa a forma como o amor é apresentado na obra em toda a sua totalidade de tecimento de ninho e que é sacramentado com uma frase que Jackie, o pai de Lizzie, profere duas vezes na história: “os pássaros são os seres que melhor tomam conta dos seus filhotes”.