O acontecimento da Annie Ernaux (Editora Fósforo, 2022) trata de uma temática que apesar de colocar a vida de milhões de mulheres em risco em todo o mundo, ainda é tratado por uma lógica que coloca o corpo feminino como propriedade do Estado, das religiões e do julgamento social. Quando era uma jovem estudante, Annie engravida depois de uma relação casual e após “essa cena esquecida por meses” se vê diante da certeza de que não quer ser mãe. A escritora não relata nenhuma de suas vivências sob o véu da culpa, e essa característica torna sua escrita genial e necessária, pois transporta temas sensíveis para um outro lugar. No caso do aborto relatado no livro, sem o tapume da culpa, se desenha diante de nós o absurdo e hipocrisia que ronda o que ela chama por diversas vezes de o acontecimento.


Pelos livros já publicados pela Annie Ernaux e sua escolha de transformar a própria vida em literatura, já podemos perceber que estamos diante de uma mulher corajosa e desafiadora. Annie não tem medo de expor algumas questões que geralmente preferimos varrer para debaixo do tapete e quando o faz acaba por desmistificar tabus e por trazer à luz algumas temáticas que nos levam a refletir sobre a violência de gênero presente em quase todas as culturas.

Em “O acontecimento” a autora levanta questões sobre sexo e sexualidade que ainda incomodam muitas pessoas quando deslocados para o universo feminino, principalmente se pensarmos na condição das mulheres ali em meados dos anos 60. Annie já questiona o lugar imposto às mulheres pela sua própria forma de viver, o que fica nítido em passagens como a que diz: “No amor e no gozo, não me sentia um corpo intrinsicamente diferente do corpo dos homens”.

Quando sua menstruação não vem e o médico sacramenta sua gravidez, Annie sabe que aquela será uma questão que terá de enfrentar sozinha. Era um cenário simplesmente impossível contar com o apoio de seus pais e o rapaz que a engravidara, é claro, deixou para que ela resolvesse a questão. A partir daí a narrativa vai mostrando o passo a passo de Annie para encontrar alguém que fizesse o aborto e percebemos os perigos que uma mulher passa quando não pode contar com um procedimento médico seguro. Apesar de ter se consultado com um médico e ter deixado nas entrelinhas o desejo de abortar, quando Annie sai do consultório percebe que nem mesmo o médico consegue enfrentar a situação: “Não pronunciamos nenhuma vez a palavra aborto, nem ele nem eu. Era uma coisa que não tinha lugar na linguagem”.

Ernaux não se coloca no lugar de culpada, mas isso não significa que o acontecimento não a tenha marcado profundamente. Uma das maiores falácias das pessoas que defendem a ilegalidade do aborto é a de que a prática pode se tornar uma espécie de método contraceptivo. Essa afirmação, além de ir contra todas as estatísticas dos países que legalizaram o aborto, também deixam de pensar na mulher enquanto indivíduo e nos diversos contextos em que uma gravidez pode estar inserida. A forma que Annie Ernaux adotou para si, para dar conta de sublimar o acontecimento foi através da escrita.

Há muitos anos estou às voltas com esse acontecimento da minha vida. Ler o relato de um aborto em um romance me arrebata, num sobressalto sem imagens nem pensamentos, como se as palavras se transformassem instantaneamente em sensação violenta. Da mesma forma, quando ouço por acaso “La javanaise”, “J’ai la mémoire qui flanche”, ou qualquer outra música que me acompanhou nesse período, fico perturbada.

Para Annie o acontecimento e sua clandestinidade se inscreve como algo já superado e a mesma diz que apesar do fato se remontar a uma história superada, isso não seria um motivo válido para enterrá-la, ou seja, para mais uma vez fingir que o aborto não existe e assim contribuir para que ele continue em um lugar que impede o diálogo.

(Pode ser que um texto como este provoque irritação, ou repulsa, ou seja considerado de mau gosto. Ter vivido uma coisa, qualquer que seja, dá o direito imprescindível de escrevê-la. Não existe verdade inferior. E, se eu não relatar essa experiência até o fim, estarei contribuindo para obscurecer a realidade das mulheres e me acomodando do lado da dominação masculina do mundo.)
As condições em que o aborto de Annie se dá são perigosas. Algo que ainda acontecerá com frequência enquanto o aborto não for legalizado e visto como uma questão de saúde pública. O relato do dia exato que o aborto acontece, no quarto 17 da cidade universitária feminina, é uma das coisas mais fortes que já li. Não pelo acontecimento em si, mas pela dualidade em que a mulher se vê, onde ao mesmo tempo está “parindo uma vida e uma morte ao mesmo tempo”.