Canção para ninar menino grande da Conceição Evaristo (Editora Pallas, 2022) é um livro com o poder de transformar as percepções dos leitores em diversas camadas. Partindo da ideia da “escrevivência”, junção das palavras "escrever e vivência", Conceição consegue nos fazer circular por histórias aparentemente banais, mas com uma lupa na mão. Com seu texto certeiro e poético, a escritora visita alegrias e dores de uma maneira singular, criando uma narrativa que parece biográfica e também prosa, para depois trazer elementos que beiram o conto de fadas e que no fundo é um verdadeiro estudo sobre a masculinidade negra e as formas como nossa maneira de relacionar foram afetadas pelo racismo e pelo machismo.


Conceição nos apresenta a um personagem dúbio, denso, interessante e muito sensual. Fio Jasmin é um homem negro, de beleza estonteante e uma virilidade que abala o coração das mulheres. Uma figura que por onde passa, assume a função de ser “um moço extremamente fascinante”. Trabalha como ajudante de dois maquinistas de uma linha férrea, portanto, sua história é contada enquanto segue pelos trilhos de ferro. De cidade em cidade coleciona conquistas amorosas, como uma versão do marinheiro que deixa um amor em cada porto.

Os nomes das cidades fictícias criadas por Conceição Evaristo são fascinantes. Ela brinca com o nome das localidades, que ao mesmo tempo dão dicas sobre os rumos da narrativa que virá a seguir. Passamos por cidades como Vale dos Laranjais, que tem uma narrativa tão sensual que quase sentimos o gosto ácido da laranja na boca. Passamos pela cidade de Alma das Flores, Remanso Velho, Ardência Antiga, Nova Ardência, entre outros nomes geniais.

Inicialmente, conhecemos Fio Jasmin através do impacto de sua passagem pela vida de mulheres dos mais diferentes tipos e dos mais variados contextos. Fato incontestável, em relação a Fio, é sua fama de conquistador e tudo o mais que saberemos sobre ele estará atrelado ao seu atravessamento por essas cidades e essas mulheres.

Os maquinistas, homens mais velhos, tendo idade inclusive para serem pais do moço, parabenizavam o gosto do rapaz por mulheres. Diziam que o jovem ajudante de maquinista trazia em si algo rijo, inquebrantável como os ferros do trem de ferro. E gargalhavam até se contorcerem com as piadinhas insossas que criavam, cuja base provocadora do riso era sempre o duro ferro dos homens a açoitar as mulheres.
O livro é dividido em capítulos, seguindo a lógica das paradas do trem em cada estação. Cada estação uma mulher, cada estação uma história. Os capítulos iniciam com nomes de mulheres conquistadas por Fio Jasmin, e além de nos apresentar a suas vivências e como se deu o encontro com Jasmin, também nos apresenta às cidades e algumas características interessantes sobre a cultura local e a forma como as mulheres são vistas.

A cada mulher que adentramos a intimidade, nos conectamos um pouco mais com a destreza de Conceição Evaristo ao contar histórias. As personalidades das “mulheres de Jasmin” são muito bem construídas. A autora não estrutura uma frase impunemente. Cada pedacinho do texto se encaixa em uma trama que carrega características fundamentais para a obra. Conceição trabalha muito bem com a simbologia do trem de ferro que passa rasgando cidades, assim como o faz o protagonista, que passa rasgando a vida das mulheres. Fio Jasmin, assim como o trem, é uma presença que chega, descarrega algo e se vai. Para as mulheres que ficam, resta uma paixão avassaladora e um mero vislumbre de um Fio Jasmin que é “esconderijo e mistério dele mesmo”.

Canção para ninar menino grande” trata de uma perspectiva completamente nova sobre as vivências afetivas negras. Provoca em lugares muito íntimos e que foram construídos, em muitos casos, na forja de uma violência social, de gênero e ancorada no racismo. Como foca nos afetos, um dos grandes temas da obra está na exploração da masculinidade negra e as performances que um homem preto precisa assumir para si para ser visto como tal.

Sua consciência lhe queimava um pouco. Mas havia aprendido que as ardências da consciência, em relação ao sofrimento que ele podia causar a uma mulher, passavam rápido. Era só desviar o pensamento para as ardências do corpo.
Conceição Evaristo escancara a violência de gênero através de um texto que consegue ser bonito e leve. Algo fascinante é que a leveza existe ainda que a autora não faça nenhum tipo de concessão em relação aos malefícios dessa realidade. Ela os insere na narrativa exatamente como eles se apresentam no contexto social, o que é um domínio narrativo extraordinário.

Aos poucos, o enigmático Fio Jasmin, que parece ter como único trauma de vida ter sido impedido de fazer o papel de príncipe na escola por ser negro, conseguirá acessar outras camadas internas que irão escancarar seu vazio existencial que o transformou em um homem “viciado em mulheres”. É quando ele realmente para pra escutar uma mulher, sem o desafio da conquista, que um outro mundo se abrirá.