Linea Nigra da escritora mexicana Jazmina Barrera (Editora Moinhos, 2023) é seu primeiro livro publicado no Brasil. Na obra, que é escrita com textos curtos e fragmentos como de um diário, Jazmina narra suas vivências com a gravidez, mesclando com diversas lembranças de sua vida e percepções sobre a realidade, que ganham um outro olhar enquanto mulher grávida. A percepção que temos é de que a autora firmou um pacto consigo mesma de narrar com sinceridade cada uma de suas vivências e o resultado é um ensaio bonito, bem escrito, provocador, realista e ao mesmo tempo poético, que versa sobre o universo da maternidade biológica.


O título do livro já é chamativo por si só, principalmente quando pesquisamos sobre suas possíveis interpretações. Linea nigra seria aquela linha de pigmentação escura que surge na barriga da mulher durante a gestação, como se dividisse a barriga ao meio. Durante a narrativa a autora apresenta algumas explicações mais científicas e outras mais poéticas para a existência dessa linha. É lindo de ver como algumas culturas interpretam a linea nigra como uma verdadeira divisão entre o antes e o depois da maternidade. É como se a Linea nigra sacramentasse que todas as transformações de uma gravidez, sendo as do corpo as mais visíveis, farão com que todo o resto se transforme.

Dizem que é para que o bebê, que vê em alto contraste, suba pelo estômago e saiba encontrar os mamilos.


O livro faz parte de uma nova onda de publicações, que se propõe a falar sobre a maternidade de uma forma mais realista e que dá voz a diversos anseios, medos, dúvidas e dores, que antes pareciam viver sob um licenciamento planejado. As mulheres não podiam dizer sobre o lado mais “difícil” da gravidez e da maternidade e isso impossibilitava um diálogo que poderia minimizar alguns aspectos problemáticos de como lidamos com a maternidade, com o corpo da mulher e seu papel na sociedade.

Minha mãe minhas irmãs só tinham me falado de uma transformação maravilhosa, de como o parto havia sido incrível, e agora descubro que sentiam enjoo o tempo inteiro e passavam bem mal. Até hoje me dizem isso. Claro que também há alegria, muita, como quando falamos de nomes ou quando imagino seu rosto. Mas isso eu sabia que ia acontecer, estava esperando; a obscuridade não.
É sobre essa obscuridade, sobre o não dito, o evitado, que Jazmina irá fazer uma incursão bastante particular, mas que pode servir de ponto de identificação para muitas mulheres. Como a autora vem de uma família de artistas e sua própria mãe é uma pintora, Jazmina consegue fazer algumas inferências interessantes para organizar o próprio pensamento. Ao olhar, por exemplo, para a obscuridade do não dito sobre a maternidade, ela o faz comparando com a obra do artista Mark Rothko, que possui algumas pinturas idealizadas em preto sobre preto. A autora fala então da paciência e da contemplação que se requer para “acostumar o olhar a ver o preto dentro do preto”.



Jazmina Barrera estudou muito enquanto vivia sua gestação e durante todo o ensaio ela cita obras, escritores e pensadores que a ajudaram a entender e até mesmo refletir sobre a condição de estar grávida.

Procuro leituras relacionadas a gravidez como se fossem guias de viagem. Livros de conselhos, de psicanálise, romances, poemas ou ensaios de grávidas. É bem difícil encontrar literatura.
A comparação com uma viagem encaixa muito bem para nós, leitores, para quem engravida e para quem não. É um universo que se abre e Jazmina consegue demonstrar, através de uma linguagem sobre o cotidiano, que uma revolução sem precedentes está acontecendo dentro de seu corpo. Ela e também nós, por vezes acabamos nos entregando à uma explicação que coloca as transformações da gravidez nas contas do mistério indecifrável da vida - às vezes, isso parece mais fácil e confortável. Olhar de perto essa transformação beira a transcendência.

É como se alguém estivesse me usando para fabricar outro ser humano, mas não sou eu, minhas mãos estão fora de meu ventre e eu não tenho ideia; embora leia que já tem pulmões e olhos e cabelo, eu nunca saberia explicar como está sendo feito. Tudo soa tão improvável, como uma alucinação ou uma história fantástica.
Como estamos diante de um ensaio que não tem a intenção de ser científico, Barrera nada na sua própria percepção da gravidez. Ela lê seu entorno, lê seu corpo que dói muito, apesar de todos dizerem que a gravidez não é uma doença. E na maioria dos casos, percebemos que ela usa como motor para seu entendimento, a aproximação das artes em suas mais variadas formas. São as minhas partes favoritas da obra.

Em uma outra passagem, Jazmina volta ao mundo das artes plásticas e cita Marlene Dumas, uma artista sul-africana que reside e trabalha em Amsterdã e trabalhou com pintura, colagem, desenho, impressões e instalações. A arte em questão é um quadro chamado “Imagem grávida”:


É o retrato de uma mulher de joelhos, com uma blusa azul aberta e o resto do corpo nu. Os mamilos grandes e escuros e a barriga enorme parecem de uns sete, talvez oito meses de gravidez. Ela levou vários anos para pintá-lo, mas não se nota, pois os traços parecem determinados, rápidos. O rosto da mulher é azul como a blusa, mas o corpo é cor de carne. Marlene compôs a imagem a partir de diferentes fotografias, dentre elas uma de si mesma, quando estava grávida da filha Helena, em 1989, por isso parece que a cabeça não correspondia ao corpo. É assim que às vezes é estar grávida: como se minha cabeça não correspondesse ao meu corpo.
Jazmina Barrera narra como tudo muda depois de uma gravidez. Uma obra de arte já não é vista da mesma forma, e dependendo pode até começar a fazer novo sentido. Os interesses se tornam outros, e até mesmo que não se tornem, o tempo para eles já não é mais igual. A linea nigra divide a vida em polos e é preciso seguir. A mulher passa a ser mãe e encontrar formas de ser algo para além de mãe, será um dos maiores desafios para a subjetividade feminina.