Sessenta primaveras no inverno com ilustrações de Aimée De Jongh e texto de Ingrid Chabbert (Editora Nemo, 2023) é um quadrinho francês que toca em temas como família, afeto, amor, sexo e liberdade na terceira idade. Apesar desse recorte, é uma obra que pode atingir pessoas de todas as idades por conta de sua natureza reflexiva e que perpassa uma busca pela individualidade muito própria dessa nova geração. As ilustrações são tão cuidadosas quanto o texto. Suas cores e texturas nos transportam para um ambiente sépia e ao mesmo tempo luminoso que nos dá uma impressão de estar sempre amanhecendo, assim como os desejos da protagonista.


A história começa no dia do aniversário de Josy, quando ela está prestes a completar 60 anos. Cada frame do quadrinho vai nos apresentando a uma família comum, aparentemente feliz e que vive numa casa bem estruturada. Enquanto Josy está em seu quarto, já sentimos seu incômodo perante algumas ações básicas do dia a dia. Logo percebemos que aquele é mais um dia comum em família para todos, menos para ela.

No andar de baixo seus dois filhos (um casal) preparam um bolo de aniversário, enquanto seu marido está fazendo reparos na porta da garagem e os dois netos brincam no quintal. Quando todos se reúnem na mesa para cantar parabéns e Josy se depara com as velas indicando sua nova idade, a mesma se recusa a soprá-las e anuncia em alto e bom som: vou embora.

Josy não se presta a dar explicações à família sobre o porque de sua decisão. Ela precisa partir imediatamente, então pega sua mala, uma velha kombi estacionada na garagem e parte para morar em um estacionamento. Nas horas seguintes, ela ignora todas as mensagens e ligações dos filhos e do marido. Longe do ambiente familiar é que vamos conhecendo verdadeiramente uma mulher que há muito estava vivendo em “modo automático”.

No estacionamento, Josy faz amizade com uma jovem mãe solteira que vive com seu bebê em um trailer. Essa moça será um sopro de vida no dia a dia de Josy, que ainda estará lidando com as consequências e as dúvidas de sua decisão de abandonar seu casamento. Através dessa nova amizade que Josy também acessará um clube de mulheres com histórias parecidas a dela e que será uma espécie de rede de apoio.



O maior desejo de Josy é recuperar sua liberdade. As autoras encontraram uma maneira inteligente e desafiadora de explorar a narrativa, pois colocou a personagem principal em um ambiente aparentemente confortável, mas que aos poucos vamos entendendo o quanto se tornou opressor para aquela mulher. As reações de sua família perante suas decisões, acabam sendo o retrato de uma sociedade que tem dois pesos e duas medidas em relação aos papeis atribuídos a cada gênero. 

Josy se mostra engasgada pela rotina de um casamento morno, onde o amor há muito deixou de habitar. A decisão da protagonista e a forma como ela o faz diz muito mais sobre tudo que ela precisou abrir mão pelo casamento e pela família do que o próprio texto diz. É claro para o leitor que ela é uma mulher no limite e não precisamos saber de toda a sua história para isso. Diferentemente de sua família, nos colocamos num lugar de compreensão e empatia, enquanto seu marido e seus filhos apenas querem seu retorno, em busca de um conforto que era apenas deles.

Josy ignora os estigmas impostos a faixa etária para arriscar recomeçar e isso é retratado de forma inspiradora. Desafiando tudo o que se espera de uma sexagenária, ela se permite viver emoções que sempre desejara e que as circunstâncias da vida foram retirando de sua vista pouco a pouco. “Sessenta primaveras no inverno” demonstra que histórias não precisam ser definitivas e sempre é tempo de se deslocar quando a infelicidade começa a ganhar morada.