O homem sem talento do Yoshiharu Tsuge (Editora Veneta, 2019) originalmente publicado no Japão em 1985, é um mangá clássico japonês ricamente ilustrado por seu esmero pelo traço simples (que diz muito sobre a história). O mangá nos apresenta a uma narrativa quase filosófica, devido às inúmeras maneiras com que discute as nuances da existência. O protagonista escolhe caminhos que o levam a um fracasso quase programado e que o colocam à margem da sociedade. O tema forte do mangá é esse fracasso pungente, que nos incomoda enquanto leitores, mas que também é o mesmo sentimento que nos faz seguir adiante com a leitura. Yoshigaru Tsuge consegue tratar do tema com uma beleza e lirismo que nos convida a olhar para a miséria por um olhar clandestino, pois existe uma intencionalidade do personagem em se aproximar da miséria e do fracasso que simplesmente não compreendemos.


A história se ancora em um gênero de mangá conhecido como “Watakushi”, que seria algo como “quadrinho do eu”. É uma nomenclatura dada aos mangás que possuem um traço autobiográfico. Ainda que não seja totalmente inspirado na vida do próprio autor, em muitos pontos, a história de Yoshiharu Tsuge serviu de inspiração para alguns acontecimentos e características do personagem principal.

O protagonista da história, chamado Sukezo Sukegawa, abandona a carreira de mangaká (termo usado para definir uma pessoa que faz, desenha ou cria histórias para mangás), aparentemente por não querer se submeter a certas normas e regras que precisaria obedecer para conseguir publicar. Ele então vai para um caminho pouco usual e que gera o espanto de todos a sua volta: a venda de pedras. Sukegawa passa a coletar pedras na beira de um rio próximo à sua cidade para vender em uma banca, que é claro, não é frequentada por ninguém. Para Sukezo, aquelas pedras tem um valor inestimável, enquanto para os demais populares não passam de algo que pode ser adquirido de graça por qualquer um.



Essa premissa abre possibilidades para diversas interpretações. Literariamente, a figura de um homem que coleta pedras comuns para vender é excitante. Essa excitação só aumenta ao passo de não conseguirmos entender porque ele faz isso. Sukegawa não vive por si só, tem uma esposa e um filho e ainda que a miséria esteja sempre batendo à sua porta, o homem sem talento não desvia do seu caminho. Ainda que o trabalho com o mangá pudesse lhe dar uma vida um pouco melhor, ele decide que não quer mais criar e que vai vender pedras e logo depois máquinas fotográficas estragadas que coleta por aí.

Dentre as muitas interpretações que podemos explorar estão as ideias que estabelecemos para definir a arte. O que define o que é arte? Como deve viver um artista? Quem decide o que está agregado de valor ou não? Sukezo Sukegawa demonstra ter perdido completamente o interesse nesses ditames e deseja viver por uma outra ordem, onde o olhar e as expectativas alheias já não são definidores dos seus passos. Ao mesmo tempo que o personagem tem um posicionamento quase apático perante a realidade, consegue também ser provocador, pelo simples fato de não fazer o que se espera dele.

Uma pedra perfeita exprime a montanha e nos mostra o vale, sugere a nuvem e o vento... revela o universo.


Uma outra interpretação possível está no roteiro que precisamos seguir na vida assim que somos classificados como adultos. Uma fase onde sonho e sobrevivência nem sempre conseguem caminhar lado a lado. Em certo ponto da obra Sukegawa interage com alguns personagens, que assim como ele, fizeram escolhas fora da curva e que possuem um propósito que não é muito claro para quem os observa. É como se fossem pessoas que já não acreditam mais no roteiro e começaram a escrever algo diferente.